sexta-feira, 13 de julho de 2018

Tempo, Delicadeza e Profundidade


A dimensão do TEMPO tem aparecido de forma muito significativa ao se trabalhar com a temática das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente quando eram crianças ou adolescentes:

1 - A pessoa tinha quantos anos quando aconteceu o abuso?
2 - O abuso aconteceu uma vez apenas ou se estendeu por mais TEMPO? Em alguns casos a pessoa foi abusada por anos.
3 - Depois de tanto TEMPO, é possível resgatar o que, de fato, aconteceu?
4 - Por quanto TEMPO a pessoa ficou em silêncio com aquele segredo guardado só para si?
5 - Quanto TEMPO leva para uma pessoa conseguir falar sobre isso na terapia?
6 - Quanto TEMPO pode durar o processo de compreender o impacto do abuso sexual na minha vida?
7 - Depois que se reconhece o abuso, quanto TEMPO demora para se ficar em paz com isso?

Ainda se teriam mais perguntas.

Como escrevi no texto anterior - ao convidar as pessoas para conhecerem o projeto - compreender o abuso sexual não é algo simples. Compreender os efeitos, muitas vezes contraditórios, em cada pessoa, não é simples. Muitas vezes é preciso de TEMPO para se adentrar neste terreno incerto e muito obscuro por vezes.

Porém, o assunto em si mexe muito com os afetos de todas as pessoas que escutam falar sobre ele. Difícil não se ter uma opinião ao ouvir relatos de abusos sexuais, muitos deles praticados dentro da própria família da vítima. Ao realizar rodas de conversa, palestras, encontros sobre o tema no projeto Revelando-Ser, não é raro encontrar pessoas que tentam dizer de maneira mais rápida o que aconteceu na vida de cada um, como as pessoas abusadas deveriam se sentir, ou até o que elas deveriam fazer com as situações que passaram.

Toda vez que escuto essas intervenções, lembro da dimensão do TEMPO novamente. Muitas vezes, nem a própria pessoa que vivenciou o abuso consegue entender o que aconteceu com ela. Muitas vezes a própria pessoa tem uma perspectiva racional sobre quem ela é e o que deveria fazer. No entanto, ainda assim, ela não consegue realizar essas mudanças de perspectivas de maneira tão rápida. "Sinto que existe um profundo descompasso entre o que a minha cabeça pode produzir e o quanto o meu coração consegue acompanhar". Muitas vezes essa pessoa passou muito TEMPO sentindo várias coisas, de maneira muito profunda e, ao ouvir outra pessoa - que não sentiu o que ela sentiu e não viveu o que ela viveu - falar de maneira mais simples sobre quem ela é ou deveria ser, a pessoa que foi abusada pode se sentir ainda mais isolada e distante de si.

Ela, mais do que ninguém, queria “acabar” com aquele sofrimento.
Ela, mais do que ninguém, queria lidar com o seu passado de maneira simples e rápida.
Ela, mais do que ninguém, gostaria de saber o que fazer e fazer logo, não perdendo nem mais um dia da sua vida pensando e remoendo essas experiências tão indigestas.
Mas, ainda assim, ela não tem conseguido e isso precisa ser compreendido, ou pelo menos aceito, pelas demais pessoas.

Quando queremos ajudar as pessoas que passaram por esse sofrimento, ou algum outro sofrimento muito profundo, talvez fosse importante lembrar que alguns assuntos quase que exigem uma delicadeza para serem tocados de maneira construtiva. Dependendo da reação de quem ouve um relato sobre um abuso sexual, a pessoa, que em muitos casos precisou de muita coragem para falar sobre isso, pode se sentir mais livre ou ainda mais pesada e desesperançosa.

Esse texto me lembrou de uma experiência que vivi no Recanto do Ser, espaço que eu atendo. Temos várias plantas no nosso jardim, quintal e interior do Recanto. Há quase dois meses percebi que tinha uma planta num vaso que já tinha sido muito bonita, mas que estava desfolhando, ficando seca cada vez mais. Ela ficava numa área externa e tinha levado muita chuva durante dias. Apesar de não ter muita experiência com plantas, eu quis ajudar aquela. Ao me aproximar eu vi que a terra estava totalmente encharcada e que o buraquinho do vaso em que a água deveria sair, estava fechado por raízes da própria planta. Provavelmente a planta estava precisando se expandir para além daquele vaso e acabou fechando o lugar por onde a água deveria sair. Logo vi que teria que tirar ela dali, mas também me dei conta que não seria tão fácil ajudar aquela planta. Eu estava com uma certa pressa devido a muitas coisas que tinha para fazer. Porém, entendi que se eu tentasse tirar ela do vaso rapidamente, provavelmente iria parti-la ou não conseguiria tirar ela com as raízes que seriam fundamentais para ela conseguir voltar a se desenvolver em um terreno mais propício.

Comecei a lembrar das pessoas adultas que foram abusadas na infância ou adolescência. Muitas vezes o terreno onde ela cresceu (sua história) não foi o mais facilitador para que ela se desenvolvesse em todo o seu potencial. Para eu poder ajuda-la de verdade, talvez isso me exija um maior tempo, uma maior delicadeza de levar em conta as suas raízes, talvez eu tenha que ir mais profundo, para poder entender e facilitar a mudança de um lugar adoecido, encharcado, sufocante para outro lugar mais fértil, com mais liberdade e espaço para ela voltar a crescer. Se eu chegar com a minha pressa em dizer quem a pessoa é ou o que tem que fazer, pode ser que eu só esteja pegando no caule dela e puxando ela para cima, talvez um movimento tão brusco para ela, que faça com que o tronco quebre ou se desvincule das suas raízes e seja ainda mais difícil para ela se reorganizar no futuro.

Infelizmente a plantinha não sobreviveu com o TEMPO, mesmo que, na medida do meu possível, tenha sido retirada com muito cuidado e estando num terreno muito melhor e sendo melhor cuidada posteriormente. Isso me remete ao TEMPO novamente, pois, talvez, eu e outras pessoas que frequentam o Recanto levamos muito TEMPO para tentar ajuda-la no lugar em que ela estava.

Poderia falar mais, mas também lembro que o TEMPO das redes sociais não permite textos tão longos.

Volto a lembrar das pessoas adultas. Penso quantas estão sufocadas nos seus silêncios, nas suas águas (emoções), vivendo um ambiente, externo ou interno, que impossibilita que elas cresçam e que ou não são vistas há TEMPO, ou são tratadas sem a delicadeza e profundidade necessários para uma volta à vida. Como a vida não é conto de fadas, algumas pessoas podem ter se isolado por tanto TEMPO que podem não permitir receber tanto uma ajuda. Porém, se cada pessoa se tornar mais aberta e receptiva para olhar, seja a sua própria história, ou a história de um familiar, cônjuges, filhos, etc. com essa delicadeza, sinto que estaremos construindo um espaço social que ajude a não se ter esse desfecho mais trágico.

O Revelando-Ser tenta trazer essas reflexões para que possamos nos disponibilizar a cuidarmos mais de si e dos outros.

Vamos dedicar um pouco mais de TEMPO para isso?