sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Racismo: o espelho onde muitas pessoas não querem se ver


 A primeira vez em que eu me descobri racista foi perto dos meus 10 anos...

(Abrindo um parêntese meio longo: Achei essa frase meio estranha quando digitei. Como assim, a primeira vez?! Para mim só se descobria algo desse tipo uma vez só! Pois é, a vida me ensina diariamente que não. De lá para cá venho buscando desconstruir o racismo dentro de mim. Porém, quando eu já me sinto tendo trabalhado essa temática “o suficiente”, vem alguma outra situação do cotidiano me mostrando o quanto ainda estou longe de não ser afetado por nossa estrutura social profundamente racista. Então já me descobri racista inúmeras vezes, em épocas diferentes. Lembra como eu me sinto em relação a não querer ser machista. Mas isso é outro papo!)

Voltando.

Quando eu tinha 10 anos, lembro do meu pai chegando com uma fita do primeiro disco do Gabriel, O pensador e um dicionário do lado para que eu pudesse tentar entender aquelas letras mais adultas com um pouco mais de propriedade. O que eu não entendia, mesmo com o dicionário, ele me explicava do jeito dele.

Eu localizo nessa passagem uma certa iniciação a problematizar o mundo, a questionar as coisas que eu tinha como certezas.

Nesse disco tinha uma música que se chamava Lavagem Cerebral. Lembro que não entendi muitas coisas quando escutei na primeira vez, mas, à medida que eu ia compreendendo, eu tomei um susto. Frases do tipo “O racismo é uma burrice, mas o mais burro não é o racista. É o que pensa que o racismo não existe. O pior cego é o que não quer ver que o racismo está dentro de você!” soaram como um tapa na minha cara, me causando incômodo e me obrigando a reconhecer o quanto eu fazia parte dessa dinâmica da sociedade.

De  lá para cá, passando por tantas experiências, inclusive me tornando psicólogo e trabalhando muito com problemáticas sociais, ainda assim me frustro por sentir coisas que eu não queria sentir.

Dando um exemplo prático: em 2009 eu fui para um evento da Abordagem Centrada na Pessoa em Florianópolis e, no final do evento, descemos até o Rio Grande do Sul de ônibus para encontrar uns amigos e depois retornar para Recife. Quando chegamos em Porto Alegre, por volta de umas 06hs, saímos andando pelas ruas próximas da rodoviária até encontrarmos um lugar para tomar um café da manhã. Estávamos todos de malas grandes e quando encontramos nossos amigos que moravam lá, uma pessoa comentou que era arriscado andar naquelas ruas naquele horário. A pessoa comentou que, geralmente, têm muitos ladrões naquelas bandas. Eu me senti meio estranho e disse que não tinha visto ninguém que eu achasse perigoso na nossa peregrinação. Um pouco depois de falar isso eu me dei conta que a representação mental de quem eu acho perigoso era de um homem negro. Eu, de fato, não sei o quanto tinha ou não pessoas que poderiam nos assaltar naquele dia, mas me doeu reconhecer que eu estava me sentindo seguro porque não vi nenhum negro. Por uma questão específica daquela localidade - bem como não se deve fazer essa generalização em lugar nenhum -  é muito provável que “o ladrão” de lá não seja negro. Ou seja, eu poderia estar correndo riscos e nem me localizei diante disso por ter dentro de mim uma naturalização de quem é o “ladrão” na nossa sociedade. Naquele dia eu me descobri novamente racista!

Não me orgulho disso, não alimento isso nos meus pensamentos conscientes, não olho para uma pessoa negra querendo acha-la inferior ou mais perigosa do que outras, etc. Mas tenho que reconhecer que esse racismo está entranhado dentro de mim e que é melhor que eu reconheça isso do que fazer de conta que não existe por querer ser politicamente correto, ou por não querer me reconhecer menos do que eu gostaria de ser.

Desejo sinceramente que paremos de tapar o sol com a peneira e possamos olhar de frente para as nossas chagas sociais de modo a criar um ambiente muito mais respeitoso, cuidadoso, inclusivo e saudável para todas as pessoas, sem deixar de levar em consideração suas singularidades.