domingo, 13 de dezembro de 2020

Você escuta o que canta?



O post passado sobre Racismo me colocou de frente com algo que eu já sabia há muito tempo: as músicas fazem parte de uma formação muito específica na forma pela qual eu passei a ver o mundo. 

Visitar essa característica me fez querer dar uma maior visibilidade a como eu curto, escuto, vivencio, reflito a vida a partir das músicas que gosto e, também, de algumas que não gosto mas, porventura, acabo escutando.

Mas aí vem a brincadeira. 

Não quero trazer para cá qualquer música.

Como dá para ver através de algumas músicas que já estão espalhadas em postagens antigas, gosto de músicas que tragam letras que sirvam para pensarmos, problematizarmos algum aspecto da vida e, quem sabe, crescer com isso.

Apesar de, em algum momento, eu trazer músicas que, explicitamente, falam de alguma questão importante, também estou querendo trazer outras músicas comuns, daquelas que parecem passar desapercebidas e que podem trazer algo para se problematizar. 

Na verdade, esse movimento tem acontecido muito comigo, com as músicas que gosto. Quando estou cantando, começo a ser atravessado por algum estranhamento, algo que me faz não me sentir bem com aquela letra. O interessante é que são músicas que, geralmente, eu já cantei muito e depois de me envolver e refletir mais sobre as questões socioculturais complexas do mundo em que vivemos passam a ser vistas por outro prisma.

O que me motiva também nessa brincadeira de compartilhar essas músicas diz respeito ao fato de que tenho falado com algumas pessoas próximas sobre elas e o susto também tem aparecido. Não tem sido raro alguma pessoa comentar que conhecia a música, mas que, também, nunca tinha parado para refletir sobre a letra mesmo. Por isso o título. Parece que muitas pessoas cantam muitas músicas sem refletir mais atentamente sobre o que está sendo cantado.

Queria deixar claro também que não pretendo avaliar e rotular as pessoas que compuseram as letras. Não estou com um fôlego de fazer um estudo mais aprofundado sobre cada música para descobrir se quem compôs, de fato, é ou era machista, racista, narcisista, elitista, a favor de uma sexualização da sociedade ou algo do tipo. Acho que é uma análise que necessita de cuidado, principalmente quando se trata de músicas mais antigas, as quais são um reflexo da sociedade em que se vivia num tempo diferente. Então não quero virar mais um juiz no tribunal das redes sociais. O que pretendo é pegar algumas letras e elencar alguns aspectos que podem ser questionáveis a partir de um olhar mais crítico da nossa sociedade. 

Mesmo assim colocarei, sempre que eu achar disponível na internet, quem compôs a música. Se alguém encontrar algum erro nessa parte, favor me informar que edito o mais breve possível.

Então convido vocês a escutar mais atentamente às músicas que vocês cantam por aí, para ver se, de fato, elas estão de acordo com o que você acredita enquanto pessoa e sociedade. 

#voceescutaoquecanta ?

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Racismo: o espelho onde muitas pessoas não querem se ver


 A primeira vez em que eu me descobri racista foi perto dos meus 10 anos...

(Abrindo um parêntese meio longo: Achei essa frase meio estranha quando digitei. Como assim, a primeira vez?! Para mim só se descobria algo desse tipo uma vez só! Pois é, a vida me ensina diariamente que não. De lá para cá venho buscando desconstruir o racismo dentro de mim. Porém, quando eu já me sinto tendo trabalhado essa temática “o suficiente”, vem alguma outra situação do cotidiano me mostrando o quanto ainda estou longe de não ser afetado por nossa estrutura social profundamente racista. Então já me descobri racista inúmeras vezes, em épocas diferentes. Lembra como eu me sinto em relação a não querer ser machista. Mas isso é outro papo!)

Voltando.

Quando eu tinha 10 anos, lembro do meu pai chegando com uma fita do primeiro disco do Gabriel, O pensador e um dicionário do lado para que eu pudesse tentar entender aquelas letras mais adultas com um pouco mais de propriedade. O que eu não entendia, mesmo com o dicionário, ele me explicava do jeito dele.

Eu localizo nessa passagem uma certa iniciação a problematizar o mundo, a questionar as coisas que eu tinha como certezas.

Nesse disco tinha uma música que se chamava Lavagem Cerebral. Lembro que não entendi muitas coisas quando escutei na primeira vez, mas, à medida que eu ia compreendendo, eu tomei um susto. Frases do tipo “O racismo é uma burrice, mas o mais burro não é o racista. É o que pensa que o racismo não existe. O pior cego é o que não quer ver que o racismo está dentro de você!” soaram como um tapa na minha cara, me causando incômodo e me obrigando a reconhecer o quanto eu fazia parte dessa dinâmica da sociedade.

De  lá para cá, passando por tantas experiências, inclusive me tornando psicólogo e trabalhando muito com problemáticas sociais, ainda assim me frustro por sentir coisas que eu não queria sentir.

Dando um exemplo prático: em 2009 eu fui para um evento da Abordagem Centrada na Pessoa em Florianópolis e, no final do evento, descemos até o Rio Grande do Sul de ônibus para encontrar uns amigos e depois retornar para Recife. Quando chegamos em Porto Alegre, por volta de umas 06hs, saímos andando pelas ruas próximas da rodoviária até encontrarmos um lugar para tomar um café da manhã. Estávamos todos de malas grandes e quando encontramos nossos amigos que moravam lá, uma pessoa comentou que era arriscado andar naquelas ruas naquele horário. A pessoa comentou que, geralmente, têm muitos ladrões naquelas bandas. Eu me senti meio estranho e disse que não tinha visto ninguém que eu achasse perigoso na nossa peregrinação. Um pouco depois de falar isso eu me dei conta que a representação mental de quem eu acho perigoso era de um homem negro. Eu, de fato, não sei o quanto tinha ou não pessoas que poderiam nos assaltar naquele dia, mas me doeu reconhecer que eu estava me sentindo seguro porque não vi nenhum negro. Por uma questão específica daquela localidade - bem como não se deve fazer essa generalização em lugar nenhum -  é muito provável que “o ladrão” de lá não seja negro. Ou seja, eu poderia estar correndo riscos e nem me localizei diante disso por ter dentro de mim uma naturalização de quem é o “ladrão” na nossa sociedade. Naquele dia eu me descobri novamente racista!

Não me orgulho disso, não alimento isso nos meus pensamentos conscientes, não olho para uma pessoa negra querendo acha-la inferior ou mais perigosa do que outras, etc. Mas tenho que reconhecer que esse racismo está entranhado dentro de mim e que é melhor que eu reconheça isso do que fazer de conta que não existe por querer ser politicamente correto, ou por não querer me reconhecer menos do que eu gostaria de ser.

Desejo sinceramente que paremos de tapar o sol com a peneira e possamos olhar de frente para as nossas chagas sociais de modo a criar um ambiente muito mais respeitoso, cuidadoso, inclusivo e saudável para todas as pessoas, sem deixar de levar em consideração suas singularidades.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Minha vida sem sol


Hoje eu acordei com dor de garganta.

Assim que a percebi tive um sentimento estranho. Uma mistura de surpresa com lembranças antigas, pois é muito raro eu ter uma crise hoje em dia, mas a amigdalite já foi uma companheira muito mais próxima, cotidiana, debilitante e incômoda durante a infância e boa parte da adolescência.

Na adolescência, já fazendo psicoterapia, fui aos poucos entendendo o fundo emocional que estava por trás daquelas crises e, junto com outras práticas integrativas, consegui encontrar um lugar menos sofrido e espaçado entre as crises.

Mas por que estou falando das minhas dores de garganta? Porque elas me conectam diretamente com uma parte da minha vida onde eu era totalmente regido pelas minhas dores. Minha vida sem sol.

Desde muito cedo.

Talvez as pessoas que me veem hoje em dia e não são tão próximas de mim, não tenham como imaginar caminhos por onde eu passei. Talvez as pessoas que me conhecem desde a infância ou adolescência, podem lembrar de vários comportamentos estranhos, agressivos, autodestrutivos que eu tinha. Mas é muito provável que também não façam a mínima ideia de tantas coisas que estavam por trás daqueles comportamentos. O fato é que, desde muito cedo, antes dos meus 10 anos de idade, eu já me sentia muito ruim comigo mesmo, com muitas angústias, muito sozinho e com vontade de não mais existir mais.

Um ponto importante, e aqui eu identifico uma virada na minha vida, foi iniciar a psicoterapia quando eu tinha 13 anos. Encontrar um espaço de fala foi muito importante para colocar para fora tantas dores que eu carregava e não me sentir mais tão isolado.Não foi uma “solução” mágica. Durante anos tive muitos momentos onde as coisas pareciam não ter sentido algum. Mas, gradativamente essa densidade  foi suavizando e, cada novo passo fortalecia a confiança no processo de me encontrar comigo mesmo e fazer dessa vida algo significativo para mim mesmo.

Porém, recentemente, recebi um convite para olhar novamente para o meu passado e quando o aceitei, minha garganta sinalizou novamente. A surpresa vem porque tenho me sentido muito bem comigo mesmo atualmente e eu sei o que mobiliza minhas dores de garganta. Apesar de toda a felicidade e o sentido mais pleno que tenho dado para o meu momento presente, sou obrigado a reconhecer que existe uma parte da minha vida em que eu não me sentia assim.

Minha vida sem sol.

Para mim, o pior de uma vida sem sol não foi ter uma noite ruim ou uma madrugada insone. O que beirava o insuportável era não saber quando ou se, o dia voltaria a amanhecer. Era se sentir apartado, excluído de um ciclo natural da vida onde as coisas se renovavam, para sentir quase que de maneira concreta e palpável que tudo tinha parado, estagnado, que nada crescia, desenvolvia, caminhava. Não ver um nascer ou pôr do sol. Não escutar os primeiros cantos dos pássaros, não ver as flores desabrochando.

Era como se o filme da minha vida tivesse pausado em uma cena muito ruim dele e eu não soubesse como fazer para apertar o botão do play novamente. E ainda nem acreditava que as próximas cenas poderiam ter algo de feliz. Essa convivência diária com dores profundas que atormentavam e me isolavam cada vez mais.

Viver os dias naquele tempo era algo bem difícil, desgastante. Já que falei de insônia: era como se eu não conseguisse dormir toda noite e ainda tentasse “aproveitar” dessas horas para fazer algo de bom para mim. Mas me faltavam forças e energias. Não dava simplesmente para eu ficar bem porque, seja lá o que eu fizesse, não sentia que estava fazendo porque eu queria, mas sim porque não tinha escolha de descansar e me renovar.

Me sentia isolado e infeliz quando via as pessoas acordarem para o seu dia parecendo estar felizes (hoje eu sei que muitas também não estavam e não estão) e eu parecia ser um pobre diabo, amaldiçoado, que não via graça em nada.

Sempre tive contato com realidades sociais difíceis e pensava que eu devia ter algo de muito errado mesmo por saber que tinham pessoas que passavam por situações “muito piores que a minha” (hoje entendo melhor que sofrimento não se mede) e ainda assim tocavam a sua vida e eu ali me sentindo no mesmo lugar.

Tudo parecia estar errado em mim.

Quando eu tentava ficar mais feliz, vinha sempre como algo forçado, muitas vezes uma compensação exagerada para encobrir a dor. Era como se eu precisasse me manter bêbado por não conseguir lidar com a ressaca. Mas isso era muito cansativo porque a ressaca parecia ser o meu estado natural de ser. Então, haja fugas para não me conectar com aquela eterna sensação ruim com a minha própria vida.

Ao olhar para tudo isso daqui, de onde me encontro atualmente, gosto cada vez mais da frase:

"Se houve um dia na vida em que a liberdade parecia um lindo sonho, virá também o dia em que toda a experiência sofrida no passado parecerá um mero pesadelo." (Viktor Frankl).

Daqui de onde me encontro, me sinto feliz. Talvez de um jeito que eu não tinha imaginado nesse momento de uma vida sem sol. Não é uma felicidade de comercial de margarina, uma imagem cristalizada e morta sobre o que é ser feliz. Continuo com muitos desafios para serem trabalhados, mas não mais a partir daquele lugar tão desesperador e sem sentido.

Por fim, queria dizer para você, que talvez se encontrou em algumas das coisas que falei sobre viver uma vida sem sol, que existe sim a possibilidade desse sol voltar a brilhar. Que por mais insuperável que possam parecer os tempos difíceis, existe a possibilidade desse reencontro consigo mesmo e com a vida. Pode não ser fácil, pode não ser suave, mas esse processo pode conter vários tesouros para a construção de uma vida mais feliz e plena de sentido.

Talvez você precise de companhia ao longo dessa jornada, para ajudar nessa travessia, para encontrar uma saída dentro desse labirinto. Então, pensa com carinho e cuidado em procurar ajuda profissional. Pede indicações para você se encontrar com alguém que você possa confiar mais e tenta! Tenta não ficar refém do sentimento de que não tem nada para ser feito. Você não precisa estar sozinho nessa!

 


sexta-feira, 5 de junho de 2020

#vidasnegrasimportam


Venho oscilando entre tristeza e revolta diante dos últimos acontecimentos que esfregam na nossa cara nossas mazelas sócio-culturais.
Não sei bem o que falar agora.
Por ora recorro à música pra expressar um pouco do que se passa comigo.
.
Lama Negra (Gonzaguinha)
Salve a lama negra
que grudou
Na sola branca dos pés
Salve as cantorias
Pelas noites na magia da fé
Salve esse cheiro de senzala
Que nosso povo todo exala
Salve esse grito dos Palmares
Sangue vivo nos cantares
Que a todos nós embala
Sambas e cirandas
Candomblés, maracatus e congadas
Crenças, lendas, lutas
Tradições pelos velhos plantadas
Coisas do rir e do chorar
Do sofrimento e da alegria
Dias de festas e saudades
Pelo tempo no cantar
Que nos traz felicidades
Força que nem o capataz
Capaz não foi de apagar
E que o futuro mostrará
Que o fruto vingará
E o filho do filho cantará (Repete 3 x)

#05| Podcast Revelando-Ser| "Mas, finalmente, o que é o abuso sexual?"


Para ouvir o episódio, clica aqui: #05| Mas,finalmente, o que é o abuso sexual? 
Falar sobre o que é o abuso sexual não é simples. 

Existem várias definições que enfatizam mais alguns aspectos do que outros, a depender do manual, do autor, da pesquisa, da área de atuação de quem está falando, etc.

Por ser também um tema que ainda é tabu na nossa sociedade, apesar do número assustador de casos que acontecem todos os anos, sentimos a necessidade de um episódio para trazer qual o conceito de abuso sexual que trabalhamos no projeto Revelando-Ser.

Como uma forma de enfatizar a diversidade de possibilidades de situações que podem gerar algum efeito negativo nas crianças ou adolescentes, conversamos também sobre alguns fatores agravantes que são considerados importantes para se compreender como cada pessoa vivencia a sua experiência em relação ao abuso sexual.

Vamos falar mais sobre isso?

Ficha técnica:
Vozes: Guilherme Assunção e Quezia Cordeiro
Edição e Vinheta: Marcelo Sena
Realização: Projeto Revelando-Ser
Gravado no dia 25.05.2020


segunda-feira, 18 de maio de 2020

#04| Podcast Revelando-Ser| "18 de maio - Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes"


Para ouvir o episódio, clica aqui: #04| 18 de maio - Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes

No episódio de hoje recebemos um convidado muito especial: o psicólogo João Villacorta, que trabalha há 13 anos no CERCCA - Centro de Referência para o Cuidado de Crianças, Adolescentes e suas famílias em situação de violência.

Conversamos sobre a importância do dia 18 de maio e como é importante falar sobre esse assunto, diante de tantos casos que ainda acontecem todos os dias no nosso país e no mundo.

Sentimos que essa foi apenas uma conversa inicial que abre portas para outras participações do João no nosso podcast.

Para conhecer mais sobre o projeto, visite o site revelandoser.org , pelo Instagram @revelando_ser ou pelo e-mail revelandoser@gmail.com

O CERCCA fica na Policlínica Lessa de Andrade, no bairro da Madalena, na cidade de Recife. Telefone: 3355-7802. Email: cerccasaude@gmail.com

Ficha Técnica:
Vozes: Guilherme Assunção, João Villaorta e Quezia Cordeiro
Gravação e edição: Marcelo Sena
Realização: Projeto Revelando-Ser
Gravado no dia: 13/05/2020

#03| Podcast Revelando-Ser| "O muro do silêncio é real..."


Para ouvir o episódio, clica aqui: #03| O muro do silêncio é real...

Guilherme Assunção e Quezia Cordeiro falam sobre situações e contextos que compõe, reforçam, fazem parte do muro do silêncio que existe em torno das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.

Para conhecer mais sobre o projeto, visite o site revelandoser.org, pelo Instagram @revelando_ser ou pelo email revelandoser@gmail.com

Ficha Técnica:
Vozes Guilherme Assunção e Quezia Cordeiro
Gravação, edição e Vinheta: Marcelo Sena
Realização: Projeto Revelando-Ser
Gravado no dia 14/04/2020

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Qual o lugar dos monstros?


De uns tempos para cá, me senti tal qual a metamorfose ambulante do grande Raul: "Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes"...rsrs
Digo o oposto porque eu mesmo já escrevi um texto na época das eleições de 2018:

Mas esse post que escrevo agora não se trata, realmente, de uma oposição ao que escrevi há dois anos.  Mas parece.

Gostaria de iniciar lembrando o que já falei em outro escrito: falo, novamente, do meu lugar de fala, de um lugar de quem é privilegiado, de quem pode fazer quarentena, de quem continua trabalhando em casa, etc. Falo sobre o meu lugar e, talvez, do lugar de algumas pessoas que têm uma posição social parecida com a minha. Minha fala não pode ser vista para além de vários recortes necessários para dar conta da complexidade do nosso momento social.

Indo para o assunto propriamente dito.

Há algumas semanas participei de um grupo de cuidado com alguns psicólogos e psicólogas que trabalham dentro da perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa e o assunto começou a girar em torno de como estava sendo difícil lidar com o momento atual e, principalmente, com as declarações e posturas do nosso presidente diante de uma situação tão grave em tantos níveis diferentes e complexos. Durante esse grupo uma psicóloga amiga – que me autorizou a trazer esse momento dela no grupo aqui nesse post – começou a falar de como escutar o presidente evocava o que havia de pior dentro dela, que emergiam tantos sentimentos ruins, destrutivos, odiosos, que ela não sabia bem como lidar com tudo aquilo. Em algum momento ela simbolizou aquela experiência falando que ela sentia um monstro dentro dela e que ela tinha que ter muito cuidado para não deixar esse monstro sair, causando ainda mais destruição. Depois desse forte relato, outras participantes do mesmo grupo se identificaram muito com essa fala e passaram a falar também dos seus monstros. Pode parecer que eu tenha entendido errado, mas senti na fala dessas mulheres, o reconhecimento de algo muito ruim que se passa dentro delas, mas também um desejo de não deixar isso sair, por já perceberem ou acharem, que não contribuiria muito com uma real mudança do quadro atual trazer tanta destrutividade. Não pareceu simples conseguir equilibrar esses sentimentos contraditórios que elas viviam. Em algum momento do grupo eu perguntei qual era o lugar desses monstros. Conversamos sobre tudo isso, mas essa pergunta continuou ecoando na minha cabeça até hoje.

Tenho refletido muito sobre o quanto estamos inertes diante de tantas atrocidades diárias que nos bombardeiam ao longo desses últimos anos e que, pelo menos na minha opinião, se intensificaram ainda mais durante essa pandemia e o desgoverno que não consegue dar uma resposta necessária para o tamanho da crise que estamos vivendo. Também me reconheço na fala das mulheres que se colocaram no grupo citado, tanto na intensidade da raiva, como também no esforço de não propagar mais ódio, tal como eu escrevi no post anterior citado acima.

Comecei a ver o esforço que eu preciso para não dar vazão a toda raiva que sinto diante de tudo. O monstro é tão grande que comecei a desconfiar que o esforço que eu tenho que fazer para não pagar com a mesma moeda à toda a violência que sinto que tem sido praticada pelos políticos da extrema direita e seus seguidores tem um preço caro para mim. Sinto que quando o monstro aparece e eu, por acreditar que não seria humanamente útil, tento segura-lo de toda forma, tenho uma tendência a me adoecer por dentro, em um processo de implosão que também vem se apresentando como uma perda de energia. Parece que minha energia é gasta tentando me conter, sufocar o monstro e que, quando eu consigo essa proeza, parece não sobrar muito mais de energia para poder pensar efetivamente o que fazer proativamente no sentido de querer mudar alguma coisa.


Ao meu ver a minha raiva me joga para fazer algo de concreto, para não aceitar de forma alguma o desenrolar dos fatos, ela me leva a querer ir pro meio da rua e talvez fazer algo mais radical. Se eu escuto o meu monstro ele grita na minha cara que é inadmissível ninguém parar o presidente, seja qual for o custo; que não é possível que a minha resposta a essa loucura que vivemos seja “somente” ficar na quarentena, no meu lugar de privilégio, e fazer movimentos mais individuais de cuidados comigo e com as pessoas a quem tenho um acesso mais direto; ela me lembra o quanto os números são vidas e que não é possível esperar as eleições para tentar modificar as coisas dentro do jogo democrático, através de mobilizações, votos mais conscientes, etc. Minha raiva me parece muito descrente e desesperada. Desesperada e/ou desesperançada, no sentido de não achar que se tem mais o que esperar. Meu monstro me pergunta: “Qual o limite da barbárie? Até quando ainda é humano conviver com tantas monstruosidade sem fazer ‘nada’?”. Quase me sinto disposto à lei do talião.

Porém, de fato, esse post não é o oposto do que eu disse antes. Não acho que dar vazão de qualquer forma para o meu monstro seria a solução dos nossos problemas multifacetados, estruturais, históricos, complexos, etc. Não acho que se tem soluções mágicas e rápidas para sairmos dessa crise. Porém, gostaria muito de encontrar um lugar de equilíbrio entre não querer realimentar a guerra e o ódio dentro de mim e na sociedade, mas também não ficar como um mero expectador diante de toda sorte de desgraças que está sendo promovida pelo presidente e pelas pessoas que o apoiam. Mas é muito torturante ficar tão próximo da minha raiva e sentir toda a impotência dos momentos atuais. Por isso que eu acho que usamos como um mecanismo de defesa, esse lugar de se distanciar e ficamos mais inertes a tudo, restando uma mobilização de redes sociais.

Precisamos encontrar formas de não ficarmos somente intoxicados com essa raiva adoecedora que faz com que ou queiramos explodir para expurgar o veneno, ou perdermos toda a nossa vitalidade encontrando uma forma isolada de ir lidando com o monstro, depurando o veneno dentro do nosso organismo.

Talvez, para além de achar que o meu monstro é meramente destrutivo, eu possa significar que ele ainda é aquilo me mantém com algo que eu não posso perder de jeito nenhum: minha própria humanidade. Talvez o meu monstro tenha que não ser apenas amordaçado, mas sim direcionado para um lugar onde ele pode ser extremamente eficaz e propositivo e que toda a raiva que me perpassa possa se transformar em algo que de fato contribua para uma real mudança.

Não tenho uma solução pronta para isso. Talvez um bom começo seja encontrar espaços de cuidados para que possamos, de maneira segura, entrarmos em contato com os nossos monstros. Colocarmos ele para fora, para dialogar com os monstros de outras pessoas que tenham uma intenção semelhante e pararmos de termos medo dele. Como se sabe em psicoterapia: quanto maior a repressão, mais o conteúdo reprimido cresce! Talvez possamos, em conjunto, encontrar nas nossas sombras, na nossa raiva, na nossa indignação um lugar que possibilite lutar de maneira efetiva e contundente contra as monstruosidades de um sistema necropolítico, sem nos perdemos na nossa própria monstruosidade.


domingo, 10 de maio de 2020

Hoje é um dia muito especial



Hoje é um dia que decidimos compartilhar um pouco sobre como estamos felizes com a chegada do nosso segundo filho, Gabriel.

Desde que a pandemia chegou forte no Brasil que sabíamos que ele nasceria durante esse período, o que estava nos deixando apreensivos com esse momento. Em mim se passavam sentimentos contraditórios. Uma mistura de expectativa, de felicidade, de querer ver o rostinho, de querer pegar nos meus braços, uma ansiedade gostosa, ao ver que o dia estava cada vez mais se aproximando. Porém, junto com isso, seguíamos acompanhando a notícia do avanço do COVID-19. O aumento dos casos, a quarentena, os cuidados que passaram a ser necessários, o receio do colapso no sistema de saúde, pessoas de círculos mais próximos começando a adoecer e/ou falecer, etc. Uma apreensão que, por mais que tentássemos confiar que tudo daria certo, ainda insistia em se perguntar sobre como as coisas aconteceriam e se conseguiríamos ficar todxs bem.

E eis que chegou o grande dia!

Gabriel chegou a este mundo no dia 02 de maio de 2020. Numa manhã de sábado, de parto normal no hospital.

O trabalho de parto começou em casa. Pensávamos que ele poderia nascer em casa, tal como foi com a nossa primeira filhota. Mas, também sabíamos que cada parto é um parto e que cada criança tem a sua história, que isso não está sob o nosso controle.

Depois de algumas horas de trabalho de parto domiciliar, tivemos que ir para o hospital e essa parte não foi fácil para mim. Para além de um ideal de querer ter o parto do jeito que achamos o mais cuidadoso e respeitoso possível, tinha uma vontade de não ir para o lugar mais arriscado que se tem atualmente com a questão da pandemia. Mas, tal como eu falei, isso não foi possível controlar. Muitas coisas se passaram ao longo das duas horas que passamos entre a chegada ao hospital e o nascimento de Biel. Como o tempo psicológico pode diferir muito do tempo cronológico a depender do que esteja acontecendo, a sensação que eu tenho é que demorou muito mais do que isso. Se eu fosse relatar cada coisa que vivi e senti, esse post ficaria maior do que já ficará. Mas também não falarei muito sobre essa parte aqui porque eu não considero que foi o mais importante.

Sinto que Gabriel veio num momento de caos para o mundo, mas nasceu de uma forma extremamente calma, serena e também determinado, passando pelas dificuldades da sua chegada de uma forma que me até me ajudou a encarar às coisas de maneira mais serena também. A palavra que me veio à mente no hospital foi “esperança”. Essa palavra não veio à toa. Ao longo de uns 10 dias antes do parto, toda vez que saíamos para tomar banho de sol no nosso jardim aqui em casa, acompanhávamos o crescimento de uma esperança que estava se alimentando do nosso pé de amora. Apesar de não gostar de ela estar comendo nossas folhinhas, por estar apreensivo com o rumo das coisas em relação ao parto, achei que era um bom presságio permanecermos naquela companhia o tempo que pudéssemos.

Quando retornamos do hospital, depois de dois dias internados, percebemos que tinha uma esperancinha que não tínhamos notado até então...rs. Não sei bem como elas se reproduzem, mas na hora pensei: “Temos esperança brotando no nosso jardim! No meio do caos pode existir esperança!”. Esse sentimento permanece em mim e também tocou algumas pessoas que contei a história com mais detalhes.

Sinto que passado o susto do internamento, passando o medo de contágio (nenhum de nós desenvolveu nenhum sintoma até agora, mas ainda estamos nos monitorando), o que vai ganhando mais espaço dentro de mim é a alegria, a gratidão, o sentimento de união que Gabriel trouxe ainda mais para a nossa família. Vai ganhando mais espaço esse amor enorme de pai que eu não sei bem como explicar. Só dá para sentir! Vai ganhando mais espaço o movimento de ir lembrando como foi gostoso ter vivido um monte de coisas com a nossa primeira filha, a vontade de voltar a ver as fotos e os vídeos e ver como foi esse crescimento dela e que vamos viver novamente essa dinâmica gostosa com Gabriel a partir de agora. E ainda vamos ter a Lara, com toda a sua amorosidade, para vibrarmos ainda mais enquanto família. Vai ganhando mais espaço ver, novamente o quanto Gabriel é a cara do pai, assim como Lara (foi mal, amor. Juro que não torço para que seja assim, mas confesso que adoro também!!! Rsrsrs)
Seja bem-vindo, meu filho! Papai já te ama muito.

Se prepara que esse mundo em que vivemos anda meio de cabeça para baixo, mas isso não deve ser muito problema pra quem nasceu cefálico e de parto normal que nem você e a sua irmã...rsrs

Mas hoje também é um dia especial não somente por esse compartilhar do nascimento de Biel. Hoje também é um dia importante por ser o primeiro dia das mães, depois desse crescimento da nossa família.

Queria muito te agradecer, Bel, por seres a mulher e mãe que és! Nesse parto me conectei de maneira ainda mais forte com o sentimento de honrar a mulher que escolhi como companheira de vida. Ao longo de mais de 16 anos, estamos construindo uma história que me muito me orgulha em vários aspectos. Quando eu brinco que a cada filho que nasce, renovamos nosso relacionamento por, no mínimo, mais 18 anos, não é por uma questão moral e nem porque eu acho que esse é um tempo bom para cuidar dos pequenos. É porque sinto que em mim se renova o amor que sinto por ti desde o começo da nossa relação e que vai ganhando outros contornos, outras felicidades que não é somente de sermos um casal, mas sim de estar vivendo algo muito precioso e profundo nas nossas vidas. Quando nossos filhos nascem, a sensação que eu tenho é como se eles atestassem, comprovassem, fossem a prova viva deste nosso amor que nem sempre dá para se mostrar de maneira tão concreta (os chorinhos de madrugada são bem concretos mesmo...rsrsrs). Como sempre falo, nem tudo são flores. Sabemos disso desde o começo. Mas acho que temos sabido aprender e crescer com as dificuldades que têm aparecido e desfrutado de tantas coisas boas que a nossa relação tem nos proporcionado.

Eu tenho certeza que conseguiria encontrar um sentido muito bom e profundo para a minha vida se eu não tivesse te conhecido e se não tivéssemos nos relacionado. Porém, olho para tudo que estamos construindo juntos e reforço o que eu falei no dia do nosso casamento: “Eu não queria estar em nenhum outro lugar que não fosse aqui do teu lado!”. Muito bom saber que não é uma necessidade, que eu não preciso estar com você para viver, mas que essa é a minha escolha ao longo desses anos e que continua sendo a escolha que faz muito sentido pra mim.

Amo quem tu és. Amo quem eu sou contigo. E amo ainda mais quem somos juntos com os nossos filhotes.

Feliz dia das mães e obrigado por dividir essa vida linda comigo. Agora somos quatro! rsrs

Simbora que ainda tem muita coisa pra gente viver! 





sexta-feira, 24 de abril de 2020

#02| Podcast Revelando-Ser| "Por que falar de abusos sexuais em tempos de pandemia?"




Para escutar o episódio, clica aqui: #02| Por que falar de abusos em tempos de pandemia?

Eu e a Quezia continuamos, mesmo em tempos de quarentena, trazendo nossos olhares sobre os temas do projeto Revelando-Ser.

Neste segundo episódio falamos sobre a necessidade de cuidados com a nossa saúde mental e emocional dentro do contexto de isolamento social que muitas pessoas estão vivendo com a pandemia gerada pelo COVID-19, incluindo uma reflexão acerca das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.

Para conhecer ainda mais o projeto, visite o site revelandoser.org, pelo Instagram @revelando_ser ou pelo e-mail revelandoser@gmail.com

Ficha Técnica:

Vozes: Guilherme Assunção e Quezia Cordeiro

Gravação e edição: Marcelo Sena

Realização: Projeto Revelando-Ser

Gravado no dia: 01/04/2020


#01| Podcast Revelando-Ser| "Revelando o que?"




Para escutar o episódio, clica aqui: #01 Revelando o que? 

Como falei no post anterior, encontramos mais uma forma de contribuir com a desconstrução do muro do silêncio acerca das pessoas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.

Estamos muito contentes e motivados com essa nova parte do nosso projeto, pelo fato de poder alcançar muitas pessoas com as nossas reflexões.

Neste primeiro episódio, eu e a Quezia Cordeiro falamos sobre a história do Revelando-Ser e porque é tão importante trabalhas com esta temática.

Estarei postando toda vez que tivermos novos episódios.

Para conhecer ainda mais o projeto, visite o revelandoser.org, pelo Instagram @revelando_ser ou pelo e-mail revelandoser@gmail.com

Ficha Técnica: 

Vozes: Guilherme Assunção e Quezia Cordeiro

Gravação e edição: Marcelo Sena

Realização: Projeto Revelando-Ser

Gravado no dia: 09/03/2020


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Desconstruindo ainda mais o muro do silêncio: nosso podcast!


Tenho falado em muitos momentos sobre o quanto é grande o muro do silêncio que envolve as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência. O objetivo principal do projeto Revelando-Ser é contribuir para a desconstrução desse muro. Já realizamos várias atividades e ainda temos muitas coisas sendo projetadas para poder efetivar esse objetivo.

Uma das formas que encontramos para alcançar um número maior de pessoas foi criando um podcast do projeto Revelando-Ser. Temos tido um retorno muito significativo de pessoas que participaram de momentos de Rodas de Conversa presenciais com a equipe do Revelando-Ser. Estas pessoas dizem que, apesar do assunto ser difícil, delicado e denso, à medida que vamos trazendo as nossas falas, elas podem adentrar nessa temática de maneira mais leve e menos angustiante.

Logicamente que não podemos prometer às pessoas que, ao nos escutar, todas vão se sentir melhores com suas dores. Tanto que sempre estamos começando com um alerta de gatilho no começo de cada episódio. Lembramos às pessoas que elas nos escutem num momento em que estejam se sentindo com possibilidades de cuidar das coisas que podem emergir ao entrar em contato com a temática. Reconhecemos esse cuidado como muito importante por sabermos que, em muitos casos, esse é um assunto dos mais difíceis de serem reconhecidos e falados sobre.

Algumas pessoas já me perguntaram se acessar esses conteúdos só é importante para alguma pessoa que já passou pela situação. Eu sempre digo que não. Por mais que você não tenha vivenciado essa experiência, é possível que pessoas que são queridas por você tenham passado. É muito mais comum do que a sociedade se permite admitir. Então, ao se conhecer um pouco mais sobre a temática, podemos criar uma disponibilidade maior para que as pessoas que passaram por isso não tenham que ficar tão isoladas. Podemos tentar ser mais acolhedores e sensíveis, desenvolver empatia por pessoas que passaram por estas situações e ajuda-las a saírem dos seus silêncios. Falo um pouco mais sobre isso nessa postagem: Falar pode mudar tudo... E o muro do Silêncio?

Então é isso. Estamos muito felizes de criar outro espaço importante para ajudar nessa desconstrução.

Estamos disponíveis nas principais plataformas de podcast, onde você pode ouvir gratuitamente aos nossos conteúdos. No nosso site você encontrará uma lista de links que irão lhe redirecionar para os sites onde os podcasts podem ser escutados (tais como Spotify, Apple Podcast, Google Podcast, etc.). Alguns desses sites também tem aplicativos que você até já pode utilizar no seu celular. Ao fazer a assinatura do nosso podcast, você recebe notificações de quando lançarmos novos episódios para sempre estar nos acompanhando.
(Podcast Revelando-Ser)

Quem puder escutar, divulgar e compartilhar para  que os nossos conteúdos possam chegar em quem está precisando, nós agradecemos muito!

Que possamos aproveitar esse momento tão turbulento e desafiante para encontrar novas formas de cuidarmos mais uns dos outros. 

O Segredo e o Abuso sexual (Por Luana Melo)



Trago para cara uma postagem feita por Luana Melo, assistente social do Revelando-Ser, para pensarmos um pouco mais sobre o silêncio que marca tanto as pessoas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.


Como surge o Segredo em torno do Abuso Sexual?

Por que esse segredo, muitas vezes, segue até a vida adulta da pessoa que vivenciou o Abuso Sexual?

Percebemos o segredo como um aspecto que comumente envolve o Abuso Sexual por diversos motivos, embora não possamos generalizar.
A criança ou adolescente consegue perceber, mesmo que não racionalmente, a depender também de sua idade, que a situação do Abuso Sexual é inapropriada mesmo que o/a autor/a não peça um segredo diretamente.

Então, vamos pensar numa situação:

Uma pessoa próxima do convívio e confiança por quem uma criança tem grande afeto, que se aproxima dela, sem usar de força física ou ameaças, nem a machuca fisicamente, com o intuito de obter prazer sexual. Essa criança é gradativamente envolvida na situação que não consegue perceber o que é carinho terno e o que é uma estimulação sexual para qual ela não tem compreensão do que exatamente se trata, nem de suas consequências.




A criança pode, inclusive, sentir prazer e buscar vivenciar essa experiência outras vezes.
Ao mesmo tempo que é prazeroso, a criança pode ter certo estranhamento, uma vez que os episódios não ocorrem na frente de outras pessoas, outras pessoas de referência não agem com ela dessa forma, também há certo pudor da sociedade sobre expor as partes íntimas ou tocá-las...

Enfim, uma série de aspectos sutis e subjetivos de cada caso que a criança sente um estranhamento, mas que pode haver um misto de sentimentos como vergonha ao se dar conta de que pode ser algo errado, medo de ser presa ou que alguém seja preso, culpa por ter sentido tudo aquilo ou não ter contado a alguém, dentre tantos outros.
Os sentimentos de vergonha, medo e culpa são suficientes para a criança manter em segredo a situação abusiva vivenciada. Ela pode se esquivar da continuidade dos abusos e se manter com esses sentimentos.

Esse segredo pode parecer tão sujo, que ela pode levá-lo à sua vida adulta, sentir inúmeras consequências dessa experiência precoce, sabendo racionalmente que foi a vítima na situação, mas ter dentro dela um sentimento da criança “cristalizado” de que não deve falar sobre isso.

Pode haver um tumulto imenso de sentimentos nas pessoas que vivenciaram o abuso sexual na infância ou adolescência e guardar esses sentimentos não ajuda a melhorar essa confusão.
O processo psicoterapêutico ajuda a se aproximar de cada um desses sentimentos e compreendê-los, tanto na ótica da criança que o vivenciou quanto da pessoa que hoje é adulta e pode se cuidar e defender. Não é um processo simples, é profundo e exige cuidado e delicadeza.

Acreditamos que é possível curar essa ferida com muito trabalho e envolvimento, respeitando o tempo e o movimento de cada pessoa em lidar com isso.

Precisamos falar mais e mais sobre essa temática para que mais pessoas possam se perceber com chance de se cuidar, de cuidar de outras pessoas e de prevenir que mais crianças e adolescentes vivenciem o Abuso Sexual.

Vamos falar mais sobre isso?

 Por Luana Melo

Falar pode mudar tudo... E o Muro do Silêncio?


Atualizado em 11.04.2020

O texto abaixo já estava sendo escrito há um tempo, mas só ontem que consegui ajeitá-lo para colocar aqui no blog. Ainda não tinha começado a divulgação dele por ainda estarmos divulgando o Podcast Revelando-Ser. Mas, depois do Marcelo Adnet ter dado uma entrevista relatando que foi abusado sexualmente na infância, e surgirem algumas reações negativas por pessoas nas redes sociais, tive vontade de compartilhar logo.

Ao Marcelo Adnet:
Muito obrigado pela coragem de se expor e correr esse risco. Sabemos, por tudo que estamos vivendo no nosso projeto, o quanto isso não é simples. Esse tema ser tocado por uma pessoa como você é uma possibilidade de ir desconstruindo esse muro do silêncio que existe acerca dessa temática. Já temos preparado uma fala específica do projeto sobre como também é difícil para os homens falarem dos seus abusos sexuais. Seu relato só nos motivou ainda mais de partilhar isso com todas as pessoas.
Receba nosso apoio!

Falar pode mudar tudo... E o Muro do Silêncio?

Eu estava novamente assistindo o clipe feito pelo Carlinhos Brown no ano passado, na época do setembro amarelo. Como atendo a muitas pessoas que estão com ideações suicidas, aquele clipe mexe bastante comigo. Porém, continuei sentindo um incômodo a partir dele, tal como eu escrevi no último post https://portaisdeuniao.blogspot.com/2019/10/falar-pode-mudar-tudo-um-complemento.html.

Continuarei com a intenção que eu tive ainda no ano passado, de trazer a mesma reflexão do post anterior para a temática central do projeto Revelando-Ser - https://www.revelandoser.org/

Faço esse post agora também porque estamos chegando com algumas novidades nesse primeiro semestre com a intenção de retomar algumas atividades do referido projeto, iniciar outras e, ao acreditar que vamos conseguir chegar a um número maior de pessoas, sinto que essa reflexão aqui se faz necessária.

Acho muito oportuno relacionar as duas temáticas, suicídio e abuso sexual, neste post. Não somente porque acho que o clipe também descreve como as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência se sentem:

“Um furacão silencioso
Um redemoinho mental
Uma tormenta diária
Uma dor abissal”

Mas, sim, porque é possível perceber como estas duas temáticas se entrelaçam de um jeito profundo e perturbador em muitas pessoas. Venho atendendo no meu consultório várias destas pessoas adultas e o tema do suicídio é recorrente em muitas delas. Algumas, inclusive, têm no seu histórico tentativas concretas de tirar a própria vida em momentos anteriores.

Lembro agora que em setembro do ano passado conversei com uma psicóloga de outro estado que trabalhava muito com a temática do suicídio. Conversamos sobre como é difícil trazer esse assunto para se conversar com profissionais e a sociedade de modo geral. Falei para ela que eu sentia a mesma dificuldade em querer trazer mais sobre o abuso sexual e ela me trouxe que, de 10 mulheres que ela atendia com ideações suicidas, pelos menos umas 07 traziam algum tipo de abuso sexual na sua história. Confesso que eu não fiquei muito surpreso. No entanto, ao mesmo tempo, fiquei refletindo sobre o fato de o tema do suicídio, apesar de todas as dificuldades, ainda está tendo mais visibilidade atualmente: seja na academia, através de produções, pós graduações e cursos específicos;  seja na criação institutos e serviços, tais como o CVV; ou ainda na criação de uma agenda política, tal como o setembro amarelo (mesmo que eu tenha alguma críticas em relação a este momento).

Quando eu penso na temática das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente não encontro essa visibilidade citada acima.

Essa conversa com a profissional me remeteu a criar uma metáfora: 

me pareceu, por um instante, que estamos podendo falar mais claramente sobre o fato de as pessoas estarem, por exemplo, com uma febre. Mas a febre é um desdobramento de alguma outra coisa que está acontecendo dentro do organismo destas pessoas. Então precisamos também conversar sobre as possíveis causas dessa febre para se pensar em como lidar melhor com a febre em si.

É importante deixar claro, caso não tenha ficado ainda, que não se trata de “como é ruim estarmos dando visibilidade ao suicídio”. Mas, sim, de “vamos nos aprofundar neste tema e, talvez, trazer à tona outros conteúdos que também são importantes e que parecem ser ainda mais tabus dentro da sociedade”.

E aí vem a reflexão sobre o clipe. Ao falar sobre o suicídio eu achei necessário complementar que nem todas as pessoas estão preparadas e prontas para ouvirem um sofrimento que é complexo, delicado, profundo, etc. Quando se trata do abuso sexual também é possível fazer o mesmo questionamento. Muitas pessoas adultas, ao tentarem sair dos seus silêncios para falar dos abusos sexuais que passaram na sua infância e adolescência, podem ter como respostas dos seus interlocutores várias frases e posturas que estão longe de ajudar a minimizar o sofrimento daquelas pessoas abusadas.

“Por que você não falou na época?”
“Você tem certeza que foi assim que aconteceu?”
“Você não deve ter falado porque gostava!”
“Para que falar disso agora? Já faz tanto tempo...”
“Agora é fácil: falar de alguém que já morreu. Ele (a) não pode se defender!”
“Se você falar isso agora, muita gente da família vai sofrer. É melhor não falar pra ninguém”

Eu teria mais exemplos para colocar. A partir deles dá pra ver como a situação cantada no clipe não está disponível para muitas pessoas que ouvem os relatos dos abusos sexuais:

“Eu te entendo, me coloco em seu lugar
Eu te vejo e posso te escutar
É difícil, e pra quem não é?
Mas te garanto, é pior calar”

Não quero dizer com tudo isso que as pessoas que foram abusadas sexualmente têm de permanecer nos seus silêncios. Só atento para o fato de que, dentro dessa temática, não basta apenas convidar as pessoas abusadas para falar para qualquer pessoa. Temos que também ter em mente que muitos dos ouvintes poderão ter comportamentos que não facilitarão aquela abertura e as pessoas podem se sentir pior do que antes de tentarem romper o silêncio. Porém, isso não significa que o silêncio tem que ser a única saída para aquela demanda. Buscar ajuda profissional é um movimento importante na construção de outro desfecho para esse silêncio.

Infelizmente não temos um serviço como o CVV em relação ao suicídio, onde os profissionais tenham todo um aprofundamento na temática para poderem ter um olhar mais amplo e profundo sobre como lidar com as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente. Mas, ainda, assim ter um momento de escuta e acolhimento com um profissional de confiança pode significar um início da saída dessa prisão. 


Espero que possamos criar, a partir das nossas reflexões, um espaço social mais acolhedor, com menos julgamentos, para que as pessoas possam minimizar os impactos gerados pelos seus abusos sexuais. 
#saberescutarpodemudartudo

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Saindo do Silêncio


O Projeto Revelando-Ser já vem sendo gestado há cerca de 04 anos.
Como os profissionais envolvidos no projeto sempre estão se dedicando a inúmeras outras atividades e, também, por outros percalços da vida, ainda não conseguimos oferecer para o público em geral, tudo que já pensamos e projetamos.
Mas comemoramos cada passo que damos a mais na construção desse projeto.
Compartilho agora um vídeo que eu fiz para falar dessa saída do silêncio que está no nosso canal do youtube.
Em breve vou ficar compartilhando aqui no blog as várias comunicações que estaremos fazendo sobre o projeto nesse período de quarentena.
Espero que cada iniciativa dessa ajude nessa desconstrução do muro do silêncio que existe em volta das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.
Quem quiser saber mais sobre nosso trabalho se inscreve no nosso canal do youtube.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O paradoxo de quem precisa correr tanto para desacelerar

Abrindo um Preambulo.

Antes de tudo, eu gostaria de indicar que, ao meu ver, esse post não se enquadra a toda e qualquer realidade social do momento atual. Sinto que estarei falando do meu lugar na sociedade e dos clientes que fazem psicoterapia comigo. Tenho clareza que é fato que, para um número grande de pessoas em situações de maior vulnerabilidade social, muitas coisas que estou falando aqui nessa postagem fazem pouco ou nenhum sentido. Tem bons textos falando sobre essas diferenças que ficam ainda mais evidenciadas em tempos de crise como agora. Lembro da frase que bem define isso:

Não, não estamos todos no mesmo barco. Quando muito, estamos no mesmo mar, mas uns em iates e outros agarrados a um tronco" (meme anônimo)

Mas ainda assim, gostaria de compartilhar um pouco do que tenho pensado sobre coisas que uma parte da sociedade está vivendo. Espero que contribua para que cuidemos mais uns dos outros, incluindo aquelas pessoas que estejam vivendo algo diferente.

Fechando o preambulo.

Será que desaceleramos?

Neste período de pandemia continuo realizando os atendimentos de psicoterapia com os meus clientes. Porém, por reconhecer a importância do isolamento social, todos os atendimentos estão sendo on line, para poder integrar a importância da continuidade do cuidado com a saúde mental das pessoas e as orientações recomendadas pelos órgãos que, de fato, estão comprometidos em cuidar com seriedade deste momento que já está bem caótico.

Ao acompanhar os meus clientes, bem como por também estar vivenciando essa “quarentena”, tenho visto como toda a vida ficou meio confusa, sem um norte claro, sem que as pessoas saibam muito bem como lidar com esse isolamento repentino. A dimensão do tempo ganhou uma importância grande nesses últimos dias. O que estive, estou e estarei fazendo com o meu tempo a partir de toda essa situação? Particularmente, não estou com meu tempo mais livre. Ademais, parece que tenho menos tempo agora do que tinha antes da pandemia.

Nesse sentido, uma reflexão me chamou a atenção por esses dias que dizia respeito à oportunidade de desacelerarmos as nossas vidas, juntamente com as nossas relações, para buscarmos nos entender um pouco mais nessa loucura que se tornou a vida.

Ressignificar as relações com tudo: vida, família, trabalho, saúde, consumo, meio ambiente, cuidados com a casa, enfim, prioridades. Achei essa proposta muito importante, pensando no quanto tenho recebido pessoas no meu consultório que sofrem com essa “normose”, vivendo essa vida corrida, no modo automático, a partir de hábitos, costumes e posturas altamente adoecedoras para si e para os outros, sem questionarem se o que se considera normal atualmente é o melhor para a vida no planeta. Lembra a frase que tem circulado (não consegui identificar ao certo a autoria):

"Não podemos voltar ao normal porque o normal era exatamente o problema. Precisamos voltar melhores. Menos egoístas. Mais solidários. Mais humanos".

Mas daí comecei a perceber o movimento de muitos dos meus clientes, a partir de tantos incentivos feitos pela internet, de quererem aproveitar tudo que eles podiam fazer na quarentena e que não cabia na rotina do cotidiano. A partir do estímulo de aproveitar “o tempo livre” para rever a sua vida, muitas pessoas resolveram: faxinar toda a sua casa e/ou apartamento; fazer todos os exercícios físicos;  ler todos os livros atrasados que se tinha em casa – sem esquecer de ler também vários livros que foram disponibilizados e socializados na quarentena; fazer todos os cursos gratuitos que apareceram; assistir todas as lives que tantas pessoas estão fazendo – bem como todos os filmes e seriados; desenvolver seus dotes culinários; criar uma rotina de jogos e ocupações para as crianças, etc. Isso sem contar com as atividades diárias e necessárias para se cuidar da casa e das crianças, sem a comum terceirização que é feita em dias “normais”.


Logicamente que eu não estou querendo dizer que cada coisas dessas não possa ser, em si, muito bom para que possamos fazer algo de útil e proveitoso durante a quarentena. O que me preocupa é a manutenção de um tipo de funcionamento que só muda de conteúdos, mas que permanece com o mesmo imperativo de ter que correr tanto para dar conta da vida novamente. Então não acho que o “problema” esteja na qualidade das coisas estão sendo feitas, mas sim, na sobrecarga que se acumula e faz com que a vida pareça ficar com muito mais autonomia e bem-estar, mas, que no fundo, reproduz uma mesma lógica robotizada e desconectada se não se tiver cuidados. O fato de termos que nos isolar não garante que a velocidade diminua. Muitas pessoas aceleraram e muito dentro dos limites que a quarentena impõe.

Tenho suspeitado que se ocupar muito neste momento também é uma forma de não entrar em contato com tantos sofrimentos, medos, incertezas, inseguranças, etc. Não quero dizer que toda fuga tem que ser considerada negativa. Acho que se todo mundo parar para pensar no que já está acontecendo e no que ainda estar por vir, muitos não conseguiriam continuar fazendo as coisas diárias que são necessárias para continuar tocando a vida em tempos sombrios. Mas penso que, se a quarentena durar mais tempo do que gostaríamos, esse modo de funcionamento, de evitar o contato com as nossas próprias emoções, também trará suas consequências na saúde mental e emocional de todas as pessoas.

Foi necessário se preocupar com coisas muito práticas e concretas para lidar com esse início de pandemia. A vida de muitos e muitas estavam e ainda estão correndo um sério risco. Esses cuidados ainda precisam ser mantidos. Mas, com a continuidade da quarentena, precisamos cuidar da nossa saúde mental para podermos passar por essa quarentena da melhor forma possível. Vi alguns textos orientando as pessoas a fazerem coisas para não se angustiarem nesse período ou para não ficarem entediadas durante a quarentena. Mas a angústia faz parte desse processo. Ela tem que ser incluída para repensarmos de verdade sobre tudo que está acontecendo nas várias dimensões da vida. Eu desejo que possamos cuidar mais do nosso emocional, incluindo todas as tensões que isso implica, ao invés de ter que seguir as receitas pré-fabricadas de como ter uma quarentena top, com alta performance, ou super espiritualizada, descontextualizando-se para não sofrer.

Muitos projetos foram criados para dar suporte psicológico voluntário e gratuito durante esse tempo de pandemia. Busquem esses cuidados, caso não tenham recursos ou não saibam a quem recorrer nesse momento.

Para quem estiver com condições financeiras, a psicoterapia on line também poder ser um recurso muito importante nestes momentos. Não para lidar, somente, com os efeitos emocionais negativos dessa pandemia, mas, sim, como um cuidado que pode se estender para além desse momento mais emergencial.

Que possamos cuidar mais da nossa saúde mental e emocional no meio de tudo isso que está acontecendo...

Se você estiver precisando de ajuda profissional, pode entrar em contato comigo através do meu whatsapp: (81) 99840.8940

quarta-feira, 18 de março de 2020

Cada casa será uma ilha? Sejamos Pontes!


Atualizado em 30.03.2020

Desde que o assunto do coronavírus foi ganhando mais destaques nas notícias, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, etc. eu ficava me perguntando sobre o que cada pessoa tinha a aprender com essa situação e como poderia lidar com tudo que está acontecendo de modo a contribuir, mesmo que com uma pequena parte, para que possamos passar da melhor forma possível.

Na medida em que os dias vão se passando essa reflexão vai perdendo essa textura mais abstrata, mais etérea, para ganhar uma concretude que me atordoa, que requer de mim – e acho que de muitas outras pessoas também – um lugar de respirar fundo e tentar manter a cabeça no lugar para se observar e observar o entorno com um mínimo de clareza, no intuito de buscar qual o meu lugar nisso tudo.

Alguns textos muito bons têm surgido trazendo esses possíveis aprendizados para todos nós: desde os textos com um cunho mais transcendental, os quais tenho aprendido a gostar e tirar algumas lições para a minha vida; até os textos que trazem questões mais sociais, culturais, ambientais, também altamente necessárias de serem repensadas. Atualmente tenho achado bom não desvincular o transcendente do social e vice-versa no meu olhar sobre a vida.

Este post aqui não buscará endossar essas reflexões, que já estão sendo feitas. Ele tem um efeito mais propositivo e prático, buscando pensar em ações concretas, feitas de maneira mais individual ou coletiva e que possam trazer benefícios a todos nesse momento.

Cada casa será uma ilha?
Eu gostaria de trazer um olhar para o movimento de distanciamento social que está sendo orientado como uma forma de minimizar a propagação desenfreada do coronavírus.

De cara queria dizer que estou buscando aderir a essa orientação, mas não sem preocupação, pois sei bem que nem todas as pessoas estarão em condições iguais de abrirem mão da sua rotina, para poder ficar em casa. E não estou falando somente dos profissionais que estão envolvidos com atividades que “pareçam” ser as mais essenciais para a manutenção mínima do tecido social. Teremos um número maior de pessoas que não poderão, pela necessidade de pagar as suas contas, ficar na “segurança” da sua casa enquanto o furacão do coronavírus passe. Os impactos sociais, os quais estão bem além dos impactos na saúde de cada pessoa, ainda não são possíveis de se mensurar com precisão. Também tem algumas pessoas escrevendo e tentando nos alertar que também pode ser falta de empatia julgar outras pessoas que não consigam aderir ao isolamento por uma necessidade bem concreta.

Mas, ao se pensar também naquelas pessoas que consigam ficar reclusas dentro das suas casas, me vem uma preocupação:

 “Certo, ao nos recolhermos em nossas casas poderemos estar mais seguros do coronavírus. No entanto, onde eu vou me proteger de todas as coisas que emergirão dentro de mim, a partir deste distanciamento social?”

Vejo alguns textos que incentivam uma boa leitura, aproveitar mais os momentos com a família, repensar os modos de consumo e o que cada um tem feito com o seu tempo no cotidiano, etc. Acho todas essas recomendações válidas e farei muitas delas. Porém, tenho pensado muito nos meus clientes, como cada um deles lidará com essa necessidade de ficarem mais isolados. E quando estou falando das demandas que emergirão com o isolamento não estou nem me referindo somente às questões que são evocadas pelo coronavírus: medos, inseguranças nos seus diversos níveis, perdas de pessoas próximas, entre outras. Estou falando das demandas que as pessoas já tinham dentro de si e que poderão ser ainda mais intensificadas com o isolamento. Não é raro observar o quanto algumas pessoas precisam muito de um cotidiano abarrotado de inúmeras coisas para se fazer para não pensarem muito na própria vida.

Lembra a frase de Sócrates:

Apesar de o coronavírus ser o principal assunto, o que mais assusta as pessoas nesse momento, já dava para sentir o quanto estávamos adoecidos mentalmente antes dele chegar colocando tantas coisas em xeque. Penso na quantidade das pessoas com depressão, ansiedade, pessoas com ideações suicidas, etc. Vou fazer uma postagem à parte em seguida, trilhando essa mesma linha de raciocínio, porém trazendo para a temática central do projeto Revelando-Ser, ou seja, pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e/ou adolescência. Tenho me preocupado muito com esse público também.

Então, minha proposta é que, nesse momento de isolamento, os (as) psicólogos (as) possam se sensibilizar e se disponibilizar para não deixar com que as pessoas fiquem ilhadas em suas casas. Estas pessoas podem estar precisando cuidar não somente da parte física, mas também da parte mental e emocional. Neste sentido, o recurso da psicoterapia on line pode servir como uma ponte, onde as pessoas podem estar na segurança das suas casas, sem precisarem abrir mão do cuidado consigo mesmas nestas dimensões tão importantes quanto se protegerem do coronavírus.

Dentro dessa iniciativa pensei que cada profissional que está realizando psicoterapia on line possa disponibilizar cerca de dois ou três horários da sua agenda para atender gratuitamente às pessoas que estejam em situação de sofrimento e que queiram buscar ajuda através deste recurso da psicoterapia on line. Pode parecer pouco, mas se cada profissional que esteja apto e comprometido com a sua profissão, puder se implicar nesse processo de se doar em prol desse cuidado com todas as pessoas, podemos minimizar um pouco a turbulência que está por vir com o avanço do vírus. Não teremos como dar conta de todas as pessoas que estejam precisando, como também não teremos como disponibilizar todos os horários da agenda. Mas já ajudaria. Outra possibilidade é que estes profissionais verifiquem a possibilidade de flexibilizar os valores das suas consultas para novos atendimentos. Levando em consideração que muitas pessoas vão ter sua renda afetada por esse novo momento, abre-se uma possibilidade de se oferecer cuidado às pessoas que estão precisando e que estejam ainda mais limitadas nas possibilidades de acessar esse cuidado. Como essa disponibilidade será divulgada, vai depender do critério e criatividade de cada profissional, levando-se em consideração o nosso código de ética profissional.

Ainda como outra possibilidade de cuidado, que não é a psicoterapia propriamente dita, está sendo realizada por vários profissionais que se reuniram para oferecer apoio psicológico neste período de pandemia e quarentena. Existem algumas iniciativas que já estão sendo oferecidas nesse sentido. A que eu estou mais próximo nesse momento, já inscrito para participar como psicólogo voluntário, é um serviço de plantão psicológico on line. Quem estiver precisando de suporte psicológico, ou queira conhecer um pouco mais sobre o projeto, pode acessar o site: https://www.conexaoafetiva.com.br/

Essa e outras iniciativas podem ser vistas no site: www.janeirobranco.com.br/

Alguns textos estão falando que esse momento está exigindo que todos nós olhemos para dentro de nós mesmos para repensar sobre a nossa vida. Porém, talvez, fazer esse mergulho solitariamente seja mais difícil. Então que possamos nos colocar como pessoas disponíveis a cuidarmos uns dos outros nesse momento. Estamos precisando nos isolar, isso é um fato. Porém, não precisamos ficar ilhados.

Que sejamos pontes de cuidado!