O “Muro do Silêncio” é feito de que?
O objetivo geral do Projeto Revelando-Ser é desconstruir o “muro do
silêncio” que existe em torno das pessoas adultas que foram abusadas
sexualmente quando eram crianças ou adolescentes.
Como tenho citado sempre, muito teria para ser falado acerca disso, porém vou
introduzir alguns elementos que podem ajudar a entender melhor o que compõe
esse muro. Importante ressaltar que vou falar de três aspectos de maneira
separada, mas é muito importante que se saiba que essas três esferas só estão
separadas aqui para, didaticamente, facilitar a compreensão. Na “vida real”,
esses aspectos estão contidos um dentro do outro, entrelaçados, um constituindo
o outro, reforçando-se mutuamente, o que dificulta ainda mais a saída do
isolamento que o muro do silêncio gera na vida de algumas pessoas que foram
abusadas sexualmente.
Ao se aprofundar e visualizar a metáfora, me deparo com pessoas diante
de um muro bem alto e extenso, cheio de tijolos dificultando a “passagem”, a
“comunicação com outras pessoas” e, até mesmo, o “reconhecimento do que existe
para além dele mesmo”, o que existem em sua volta. Passo a “escutar” muitos dos
relatos que já chegaram até mim sobre como é difícil falar sobre o abusos
sexuais sofridos e o isolamento que isso gera em cada pessoa. Eu divido, por
ora, esse muro em três camadas, desde a base até o topo, que correspondem a
diferentes esferas da vida de quem foi abusado sexualmente há anos, ainda sem
saber o que considerar base, meio e topo do muro:
- Esfera
individual;
- Esfera
familiar;
- Esfera
sócio-cultural.
Esfera Individual - Tenho falado um pouco sobre essa camada em textos anteriores: http://portaisdeuniao.blogspot.com/2018/07/tempo-delicadeza-e-profundidade.html ;
Vejo aqui toda a dificuldade que as próprias pessoas que foram abusadas
sexualmente têm de entrar em contato com a sua experiência. Em praticamente
todos os casos que atendi as sensações que as pessoas experimentam ao lembrarem
dos abusos sexuais não são nem um pouco agradáveis. Muitas pessoas passaram por
momentos em que parecia que elas não iriam suportar lidar com aquelas
lembranças e as emoções que aparecem diante delas. Algumas pessoas inclusive
não lembravam dos eventos abusivos da sua vida. Ou seja, a pessoa pode criar um
muro do silêncio em volta da dor, em volta da ferida que ainda está aberta e
latente, não conseguindo revelar nem para si mesmo o quanto aquela situação
afetou e ainda afeta a sua vida. Muitos sentimentos podem dar suporte para este
silêncio: vergonha, culpa, medo, raiva, mágoa, abandono, rejeição, exclusão,
traição, sentirem-se sujas, falta de confiança em si e nos outros, etc. Quando
o abuso foi cometido por algum familiar muito próximo, esses sentimentos se
misturam com tantos outros, o que pode gerar uma confusão, contradição “dentro”
da pessoa.
Esfera Familiar - Agora pensemos que a pessoa abusada conseguiu reconhecer / olhar para
esta experiência - que parecia estar somente no passado, mas que se apresenta
de maneira bem contundente no presente - mesmo que ainda com muito
sofrimento. Logo em seguida, outra camada de silêncio apresenta-se com o poder
de abafar aquilo que está emergindo de maneira ainda muito incipiente: os
vínculos familiares.
Como minha família reagiria se eu contasse? Quais as consequências
disso? Vou prejudicar a minha família? E se eles não acreditarem em mim? Se
eles acharem que a culpa é minha?
São tantas questões, tantas possibilidades das coisas “piorarem” para a
pessoa que foi abusada que muitas vezes ela não sabe o que fazer com esse
segredo. Muitas vezes a saída é continuar em silêncio, sem contar para ninguém.
Porém, essa situação pode piorar na medida em que ela entra mais em contato
profundo com o conteúdo do abuso, pois, agora, não dá para fazer de conta que
nada aconteceu e continua acontecendo dentro dela. A tensão pode aumentar ainda mais
e se tornar mais explícita do que quando a pessoa tentava viver a vida sem
olhar para isso. Quando o abuso é praticado por um familiar, a própria rede de
apoio familiar pode não querer olhar para a violência, porque ela fica
fragilizada, dividida, sem saber que lado tomar, o que fazer. Muitas vezes a
própria família prefere que as pessoas abusadas continuem em silêncio. “Já
silenciou isso por tanto tempo! Por que mexer nisso agora?!”
Lembro agora de uma pessoa atendida por mim e que me relatou que
sempre lembrou da situação do abuso, mas nunca tinha parado para realmente
sentir tudo que ele representou na vida dela. O abuso foi cometido por um
familiar bem próximo e ela teve que ficar convivendo com o mesmo porque ele
morava perto da sua casa. Ao trabalhar este conteúdo na terapia, a pessoa se
deu conta de que foi necessário ela não olhar para o abuso sexual ao longo
daqueles anos todos para ela poder continuar convivendo com a sua família.
Quando a terapia começou a mexer nesse assunto de maneira mais profunda, a
pessoa sentiu que quanto mais ela ouvia os seus próprios sentimentos em relação
aquele drama, que também era familiar, menos ela conseguia “funcionar bem”
dentro da família. Era como se, para ela, conviver com a família implicava em
não olhar para o abuso. Mas ele teve que ser olhado e isso implicou em se
afastar da família.
A imagem que me vem é de uma festa de família em uma casa bem grande e
que quando a pessoa que foi abusada vem chegando, ela tem que deixar do lado de
fora da casa uma experiência que para ela é significativa. Uma parte do ser
dela tem que ser alienado de si mesma para poder estar com as pessoas que ela ama
(muitas vezes incluindo o autor/a do abuso). Mas o preço dessa alienação pode
ser caro para a pessoa ao longo da vida e, ao não querer mais sustentar essa
cisão de si mesma, a pessoa pode não se sentir conseguindo conviver com aquelas
pessoas. Ela pode precisar se isolar e sentir uma solidão que não é tão
novidade assim, pois, na verdade, ela sempre se sentiu solitária, de maneira
inconsciente, após o abuso que ela nunca compartilhou com ninguém. Essa solidão
pode se tornar ainda mais concreta e isso não é fácil.
Esfera sócio-cultural - O abuso sexual, apesar de parecer ser um evento individual e/ou
familiar, acontece dentro de um “tempo e espaço” social e cultural. Não tem
como se discutir o abuso sexual, a sua prevalência e ainda mais o muro do
silêncio em volta dele, sem situá-lo dentro dos valores, dos discursos, das
relações de poder, opressões, do lugar que foi e ainda é dado para a família,
crianças, adultos, homens e mulheres, sexualidade, violação de direitos, etc.
ao longo dos anos passados. Ainda mais quando estamos situando o foco do
projeto em pessoas adultas que foram abusadas sexualmente há 15, 20, 30 ou mais
anos.
Atualmente muitas pessoas que passam por alguma situação de violência
encontram imensas dificuldades para denunciar essa violência e serem acolhidas
nos seus sofrimentos. O nosso contexto socio-cultural ainda tende a negar a
importância de eventos violentos que acontecem com determinados grupos da
sociedade, fazendo de conta de que eles não existem, e se existirem não são tão
sofridos assim. A famosa era do “mimimi” que tanto ocupa falas e discursos nas
redes sociais.
Se essa dinâmica acontece atualmente - dentro de um contexto onde a
violência é mortal, gritante, alarmante, expressa em números, em imagens de
tantos vídeos, e ainda assim é minimizada por essas relações desiguais entre
atores sociais diferentes - imaginem o desafio que é falar de uma violência que
aconteceu há tanto tempo, muitas vezes sem provas, com lembranças confusas, com
pessoas que podem até já terem morrido. Se uma mulher que foi agredida,
violentada e morta por algum homem de maneira brutal (como tantas que,
infelizmente, chegam ao nosso conhecimento) ainda é julgada, culpabilizada e
negada em sua humanidade, qual a mensagem que, implícita ou explicitamente
estamos passando para outras pessoas que queiram falar das suas violências do
passado. Talvez seja difícil para as pessoas compreenderem que para uma pessoa
que demorou anos para falar de um abuso sexual do passado, ser julgada da forma
que é comum hoje em dia, pode ser ainda mais violento e desestruturador. Como
se ela nunca tivesse o direito de querer sair daquela prisão, como se não
tivesse “espaço social” para aquela dor e que ela tem que carregar esse fardo
sozinha consigo mesma como fez tão bem ao longo dos anos. A que custo só a
própria pessoa sabe!
Ainda bem que estão aparecendo cada vez mais situações nos meios de
comunicação que retratam essa situação das pessoas adultas que foram abusadas.
Porém, sinto que, enquanto sociedade, ainda não estamos podendo reconhecer o
quanto isso aconteceu e ainda acontece. Parece difícil atualizar o conceito de
família e reconhecer que em muitos casos ela não é, somente, uma célula social
protetora, nutritiva e que promove o crescimento das suas crianças. Ela também
pode ser violenta e é importante que possamos lidar com isso para cuidar das
pessoas que foram se perdendo ao longo do caminho.
Novamente sinto que muito ainda poderia ser falado...rsrs
Mas fica o convite para que as pessoas que leiam possam perguntar,
questionar, debater.
Estamos promovendo encontros regulares para debater sobre esses
assuntos.
Que possamos ser agentes de mudança na desconstrução desse muro do
silêncio no intuito de criar uma sociedade mais acolhedora e inclusiva para
todxs.