TRECHO DO FILME"- A questão, Jessie, é que você se
casou com a única dinâmica que conhecia. Você era uma garota, ele era um homem.
Nunca conseguiu escapar disso. Aquela tarde nunca acabou.
- Já não basta eu estar aqui?
Também preciso estar lá? De novo?!
- Me diga você...
Falar sobre as pessoas adultas que foram
abusadas sexualmente na infância e adolescência implica em lidar com uma série
de complexidades que nem sempre são fáceis de serem trabalhadas dentro de um
processo psicoterapêutico.
Esta cena do filme Jogo Perigoso
(2017) retrata uma dinâmica que tenho acompanhado nos processos de muitas
pessoas adultas que me procuram.
Na cena, Jessie (personagem
principal) é uma mulher adulta que passou por uma situação de abuso sexual bem
no início da adolescência e, como a maior parte das crianças e adolescentes que
passam por essa situação, não teve a possibilidade de elaborar esse fato quando
aconteceu, guardando esse segredo por toda a vida. O diálogo citado acontece
quando uma personagem do filme que conhece a Jessie muito bem diz que ela ainda
vivia aprisionada naquele passado. E que, mesmo ela não pensasse sobre o abuso
sexual, tinha feito várias “escolhas” da sua vida influenciada por aquele evento.
A personagem insiste para que Jessie olhe para o seu passado para encontrar a saída
da prisão bem concreta que estava vivendo no momento presente.
Volto para as pessoas que me
procuram. Muitas pessoas adultas abusadas sexualmente na infância e
adolescência desenvolvem uma série de consequências durante a sua vida que tem
uma relação íntima com aquele evento do passado. Porém, fez parte do movimento
de sobrevivência desta pessoa não olhar para aquela experiência para não sofrer
ainda mais. Logo, aquela criança ou adolescente se torna uma pessoa adulta que
carrega uma série de comportamentos sem nem conseguir entender que estes são um
desdobramento de algo que parecia ter ficado lá atrás, mas torna-se presente em
vários momentos da vida.
Na psicoterapia com estas pessoas,
quando o abuso sexual começa a aparecer como algo mais significativo, é muito
comum que elas sintam dificuldades em dar o espaço necessário para que essa
demanda surja com mais nitidez. Tal como a Jessie do filme, a pessoa já está se
sentindo muito mal por estar vivendo situações de depressões, ansiedades,
dificuldades nos relacionamentos afetivos e sexuais, baixa autoestima, ideações
suicidas, etc. Quando a psicoterapia caminha para adentrarmos nessas memórias
do “passado”, a pessoa adulta pode se sentir ainda mais desolada. Tal como a
Jessie pode perguntar: “Já não basta todo o sofrimento que tenho sentido na
minha vida atualmente? Eu ainda tenho que lembrar daquelas situações do
passado. Justamente aquelas que eu passei a vida toda tentando esquecer?!”
Responder a esse questionamento
não é fácil. É como se a pessoa sentisse que é coisa demais para ela dar conta
de uma vez só. E ela tem razão! Por isso que, em muitos processos terapêuticos,
é preciso se ter um tempo maior para que se compreenda o impacto que um abuso
sexual teve na vida de quem passou por ele e seus desdobramentos naquela pessoa
adulta que me procura.
Tal como no filme, muitas vezes é
necessário revolver este passado para encontrar as chaves que podem nos ajudar
a lidar melhor com as prisões que vivenciamos no momento presente. E é
importante que tanto o profissional quanto o cliente saibam que os primeiros
momentos de entrar em contato com essa demanda silenciada por tantos anos podem
ser muito desafiantes. Pode parecer até que as coisas estão piorando ao invés
de melhorar. Mas tenho podido acompanhar várias pessoas e constato que, após
esse deserto inicial, em muitos casos é possível para a pessoa ir encontrando,
aos poucos, um lugar melhor consigo mesmo e com a sua própria história.
Que possamos, enquanto profissionais e pessoas, nos disponibilizar a entender mais dessas complexidades para podermos facilitar que as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência possam saírem mais dos seus isolamentos, dos seus silêncios.