sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Dividir para ser conquistado: a projeção da maldade nos outros


"Quando vires um homem bom, procura imita-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo." Confúcio

Primeiro de tudo, pausa para respirar...rsrs

Agora senta que lá vem textão...

Muito se tem falado dos tempos sombrios que já estamos vivendo e que “os ventos” anunciam que ainda pode ficar pior.

Tenho tanta coisa pra falar, mas vou tentar organizar por partes.

Primeiramente queria deixar claro que vejo na possibilidade de Bolsonaro ser eleito presidente uma grande ameaça à democracia e vários valores fundamentais à manutenção do que chamamos de sociedade. Logo, o meu posicionamento será o de fazer o possível para que não precisemos chegar nesse “lugar” para aprendermos sobre o que quero apontar aqui. Meu voto no primeiro turno não foi no PT, por inúmeras razões que não vou citar agora. No entanto terá que ser no segundo turno por conta dessa ameaça que sinto que está rondando a nação. Não será um voto sem críticas, achando que era o melhor desde o início, tanto que não votei no primeiro turno. Será um voto a favor da possibilidade de se manter acesa a chama da liberdade, da mobilização, do debate, da crítica, do questionar o próprio governo – incluindo a prisão de políticos dos partidos onde seja constatado que crimes foram cometidos, etc. Muitas pessoas estão achando que ter esse receio é ser muito alarmista, que não é tão grave assim, que a democracia não está ameaçada. Pode até ser e quero muito acreditar que não chegamos, enquanto país, nesse nível de irracionalidade. Porém, repetir um episódio tão lamentável, perigoso e destrutivo é tão grave que eu prefiro não correr esse risco. O preço a ser pago pode ser muito alto.

Segundamente, no post anterior, estive falando sobre a energia de ódio que eu sentia e ainda sinto que Bolsonaro representa tão bem e o quanto eu achava que todxs estavam se contagiando, inclusive aqueles que estão lutando para não deixar essa energia se instaurar por completo no poder. Passado o primeiro turno, com os seus resultados e com as primeiras reações de muitos que vejo nas minhas redes sociais, sinto uma tristeza profunda e uma grande preocupação. Diante do resultado expressivo de Bolsonaro, inicia-se uma mobilização, por vezes de uma forma desesperada, para se obter votos para ambos os lados na corrida para se fechar o resultado no segundo turno. A polarização, que já não estava pequena, assume formas bem concretas e lidar com isso não é simples. Nessa busca, podemos não ver o quanto estamos, inconscientemente, alimentando o lado oposto.

Pausa para parecer que vou brincar com a cara de quem está lendo esse post, mas é sério.

Brinquei com algumas pessoas próximas que eu iria começar essa nova postagem dizendo que falaria sério sobre política e para isso traria, como pano de fundo, duas analogias muito acadêmicas (rsrsrsrs): o anime Dragoon Ball Z e a saga de Harry Potter.

Sobre Dragon Ball Z, eu peço a ajuda de pessoas que tenham assistido, de fato, o anime para me corrigir se eu estiver errado, pois eu não me lembro bem. A analogia que ficou para mim é o mais importante e não parou de vir à minha cabeça durante a ascensão do Bolsonaro nos últimos tempos. Tem um vilão no anime que se chama Majin Boo e, caso eu não esteja muito enganado, ele tinha uma característica interessante: conseguia absorver todo o poder de um golpe que era desferido contra ele e, consequentemente, saía mais fortalecido depois dos ataques. Quanto mais eu via as pessoas atacando Bolsonaro com o mesmo tipo de energia que ele representa, eu pensava: em algum nível estamos dizendo que a postura de ódio dele serve para fazer política. Vi muitos eleitores pró-Bolsonaro mostrando de maneira muito óbvia que era muito contraditório algumas pessoas ligadas à esquerda serem contra o radicalismo do candidato deles usando de uma postura tão odiosa quanto as coisas que ele falava. Sentia que no final rolava um: qual a diferença da lavagem cerebral e intolerância da direita para a esquerda. Inclusive vi algumas pessoas que tentavam se posicionar num lugar menos polarizado querendo dialogar com algumas pessoas da esquerda e eram taxados com várias generalizações, gerando uma mensagem implícita ou explícita de que também não era fácil debater com eles a partir de uma visão diferente. Geramos em muitos momentos um combate de “cegos e surdos” onde as pessoas deixaram de se ver, de se escutar enquanto pessoas. Movidos pela raiva, pelo medo, pelo desespero, começamos a ver inimigos por todos os lados  e, no final das contas, a energia de ódio só aumentou, alimentando diretamente quem mais está representando ela. Tentar lutar contra o ódio de quem eu considero fascista, odiando, estou dando a minha energia para ele, fortalecendo-o.

Mas aí entra uma dinâmica que tem a ver com o título da postagem: a projeção da maldade. Tenho a impressão, e algumas teorias psicológicas podem explicar isso de maneira mais profunda, de que não queremos reconhecer em nós o quanto temos aspectos dos quais não nos orgulhamos. Temos dificuldade em perceber que algumas coisas que criticamos fervorosamente no “outro” também estão dentro de nós, de maneira até mais escondida – podendo ser até mais perigoso, justamente por não termos consciência disso e podermos atuar no mundo movidos por estas coisas. Na vontade de sermos pessoas boas, não reconhecemos as nossas sombras e só conseguimos ver estes aspectos quando outras pessoas os apresentam e – a partir delas, nos “outros” – fica muito claro o quanto estas coisas são ruins. Segundo as teorias, todas aquelas coisas que negarmos estar em nós, teremos a necessidade de enfatizar no outro, como uma tentativa de não ver que elas também estão em nós.

Vejo isso todo dia no meu consultório atendendo às pessoas. Porém, sinto que esse movimento não acontece somente numa esfera individual. Acredito que essa dinâmica também permeia as relações sociais, entre os grupos diferentes. Partindo dessa percepção, vejo duas grandes projeções (devem ter várias outras) nesse momento político tão polarizado nos discursos da esquerda e da direita:

1 – Na esquerda vejo uma projeção em relação ao discurso de ódio. Falei isso nas minhas duas últimas postagens e continuo enfatizando a mesma coisa nesse momento. Mesmo que, nesse segundo turno, eu veja algumas mudanças nas falas das pessoas que estavam batendo tanto nos “fascistas” durante o primeiro turno.  Acredito piamente que as pessoas podiam estar querendo, de fato, evitar o que elas acham que seria uma tragédia ao permitir que Bolsonaro se eleja. Porém, junto com essa intenção, muito ódio que estava guardado “dentro” das pessoas veio à tona com esses embates. Tanto ódio não foi gerado “somente” porque o candidato falou coisas absurdas dentro do contexto geral em que vivemos. Ele não teria poder de despertar uma ira quase que incontrolável que foi alimentando as interações nas redes sociais nos corações tão lindos, puros e sem nenhuma agressividade. Pode parecer trabalhoso isso, mas teremos que olhar para dentro e ver o quanto algumas sombras também nos habitam para poder trabalha-las melhor no nosso cotidiano individual e social. Com esse segundo turno, com o discurso mais moderado, podemos deixar de observar que aquele ódio todo não desapareceu, não era só estratégia de defesa de um estado democrático. Aquele ódio ainda está aí e o melhor que podemos fazer é trabalhar isso em nós.

Lembram que eu falei que iria falar de Harry Porter? Essa analogia serve para refletir sobre a projeção que eu vejo na direita e que falarei adiante. Assim que acabou o primeiro turno eu pensei: Como vencer de um Bolsonaro? Ele apareceu de maneira mais forte do que eu esperava. Não sei de onde veio essa ideia, talvez do movimento de não falar do nome dele. Pareceu que ele também era “aquele que não se pode nomear”. Eu comecei a pensar em Lord Voldemort e a história das horcruxes. Na saga, Voldemort era um vilão imortal porque partes da sua alma tinham sido inseridas em objetos, na cobra que sempre o seguia e no próprio Harry Potter. Não entendo muito da saga, tal como o anime, mas essa metáfora me veio na mente. O que eu entendo é que não seria possível derrotar Voldemort sem destruir as partes da alma do mesmo que estavam espalhadas em vários lugares. Dentro dessa metáfora, me veio algo que já tenho pensado muito. Não adianta combatermos algo enquanto movimento social e ao mesmo tempo sustentar esse mesmo algo na nossa esfera pessoal, individual. Não adianta eu querer combater o ódio na esfera macropolítica, quando ele está tão encrustado dentro do coração de cada pessoa. Sempre vão aparecer mais e mais pessoas que vão conseguir reunir essa energia em torno de uma ideia ou movimento. Como se vence Bolsonaro: “destruindo” a parte da energia dele que está dentro de cada um de nós. Coloco o destruir entre aspas mais para fazer alusão à série. Acho que o ódio tem que ser, primeiramente, reconhecido, acolhido, para poder, então ser transmutado em outras possibilidades de existência. É isso que tenho contribuído para alguns dos meus clientes no consultório e sinto que é isso tem que ser feito em um nível mais social e cultural. Não digo que todo mundo tem que fazer terapia, não é isso. Mas que cada pessoa possa, sinceramente, olhar para dentro, ver suas dores e traumas, e possam dar um outro direcionamento para essa energia.

Sei que é difícil para algumas pessoas reconhecerem o ódio dentro de si. Muitas pessoas vão dizer que isso deve estar em muita gente, “mas em mim, não”.  Se você já conseguiu chegar num estágio de consciência onde você não tem nada disso, acho que deve ser uma maravilha viver como você vive. Ainda não faço ideia de como seria viver assim. Se essa mensagem não se encaixa para você, tudo bem. Que você possa servir de inspiração através dos seus sentimentos, pensamentos, discursos e ações no mundo em prol de um mundo melhor. Porém, acho que você deve ser uma pessoa que não é tão fácil de achar por aí. Mas se você fizer parte da grande maioria que ainda tem muita coisa dentro de si, faça um favor para todxs nós, não deixe de reconhecer a sua parte, para não termos que ficar criando separação achando que somente o outro grupo é responsável pela maldade do mundo. Quanto mais você fizer a tarefa de casa de olhar e cuidar do seu “lixo interior”, mais fácil será para mantermos o mundo mais limpo.

2 – A projeção que vejo na direita diz respeito à corrupção. Vi muitas pessoas que dizem não se identificar com muitas coisas que Bolsonaro fala, mas que não podem mais suportar um partido tão corrupto quanto o PT. Eu tenho minhas dúvidas do quanto o PT é o mais corrupto dos partidos. Sei que existe corrupção em outros partidos, sei que existia corrupção antes do PT assumir o governo (Collor não era PTista), inclusive acredito que também deve ter tido corrupção durante a ditadura militar. Mas acho que muita coisa não foi investigada. Já escuto as pessoas falando que o fato de se ter corrupção em outros partidos não justifica ou diminui a gravidade do que o PT fez. Concordo plenamente. Só uso o mesmo raciocínio que usei acima quando falei da projeção do ódio. Talvez tenhamos todxs que observar o quanto a corrupção do nosso país não é uma característica de um ou outro grupo isoladamente. Nossa corrupção é institucionalizada e também endêmica. Todos sabem de como temos um “jeitinho brasileiro” para lidar com a nossa vida. A corrupção, de um jeito ou de outro, também está no nosso cotidiano, através de atos que parecem pequenos, mas que, somando-se, criam uma cultura que normalizou essa maneira de viver. São muitas as formas em que a corrupção se apresenta. Usando da mesma analogia, parece que não queremos reconhecer o quanto essa energia está dentro da gente e estamos procurando quem é o responsável por esse mal na nossa sociedade. E aí sobrou para o PT. Entendam que não estou dizendo que o PT não fez nada. Não é por acaso que ele está servindo dessa grande tela para projetarmos nossa corrupção. (não vou entrar aqui no mérito de uma reflexão que eu faço sobre qual a importância dos meios de comunicação, estruturas de poder, capital, etc. que poderia problematizar mais esse ponto. Mas o post já está enorme...rs). Tal como raciocinei quando falei do ódio de Bolsonaro. Ele, de fato, tem um discurso que incita a violência. Basta ver algumas postagens dos seus eleitores e também os relatos de pessoas que estão sendo agredidas ou intimidadas por estarem no lado oposto. Mas o problema está em querer concentrar o ódio de um país nele ou nos seus eleitores, como também concentrar no PT e nos seus eleitores toda a corrupção do país. A quantidade de fake News que rolou nesse primeiro turno é uma boa amostra disso que estou falando.

Do mesmo jeito que falei em relação ao ódio, também acho que é difícil admitirmos o quanto temos essa sombra da corrupção dentro de nós mesmos. Mas acho que é um esforço que vale a pena quando se leva em consideração o benefício que ele pode trazer ao pararmos de ter que ver somente no nosso “inimigo” a maldade da corrupção. A metáfora de Voldemort também cabe aqui

Acredito que tem ódio tanto na direita quanto na esquerda. Também acredito que temos corrupção na esquerda, quanto na direita. Estamos brigando como se estivéssemos totalmente distantes nessas trincheiras, quando, na verdade, poderíamos nos juntar para combater esses males que estão há mais de séculos tomando conta do nosso país. Não existe salvação mágica, simples e rápida para um contexto que foi se formando há muito tempo. Se eu abro mão do pensamento projetivo e simplista, todos os problemas do país começaram desde o momento de sua colonização e vêm se arrastando de lá até aqui.
Estou me sentindo como se ninguém fosse aceitar que tem essas coisas dentro de si e vai dizer: “Se você tem ódio e corrupção dentro de você, isso é um problema seu. Não julgue o mundo através dos seus próprios sentimentos. Pare de projetar em mim os sentimentos que só estão em você.” Talvez seja eu mesmo o violento, odioso e o corrupto. Reconheço isso em mim e tenho me esforçado ao máximo para reconhecer e transmutar no meu dia-a-dia. Ruim é quando a gente nem reconhece. Se ninguém se identifica com isso, sinto que teremos que ter momentos mais difíceis ainda para poder olhar para estas sombras. Estou torcendo para que já tenhamos chegado ao mais baixo necessário do fundo do poço para podermos nos reconhecer e começarmos a subir.

Diante de tudo isso, o que eu proponho: Não ficarei em cima do muro. Votei no primeiro turno em Ciro e votarei no segundo em Haddad porque acredito em termos espaço político e social para nos mobilizarmos e sinto que uma possível ditadura ou um governo mais autoritário pode não permitir isso. Um raciocínio parecido com o do ator Pedro Cardoso que postou um vídeo dizendo que votaria no PT para fazer oposição no dia seguinte. Essa fala tem tudo a ver com o que estou escrevendo sobre a projeção. Se o mal que existe na sociedade também começa dentro de mim, também é responsabilidade minha dar conta disso. Falei mais acima que cada um tem que olhar dentro de si, mas nossa atuação pode não parar somente na nossa esfera individual. Podemos limpar o lixo da nossa casa, mas podemos também nos organizar enquanto sociedade para ajudar a limpar o lixo lá fora. Nesse ponto me vem uma pergunta: Todas as pessoas que estão tão preocupadas com a corrupção nessas eleições, onde estavam durante todo o tempo em que tantos escândalos têm aparecido? Será que enquanto pessoas e sociedade, temos uma prática de participar de espaços que servem de fiscalização, de mobilização, de construção de práticas mais transparentes, mais idôneas e que garantam que os nossos políticos não vão poder fazer o que quiserem com o nosso país? Quando eu morava em prédios, eu não participava nem de reunião de condomínio. Mas, já que estamos correndo o risco de colocar o país em uma situação tão perigosa por não suportar mais a corrupção, que tal mantermos a democracia, mas não deixarmos o combate à corrupção deixar de ser uma pauta de extrema prioridade? No entanto, pela experiência que tivemos com a ditadura, sabemos que não dá para se mobilizar e cobrar de um governo autoritário, porque não se pode ter uma força contrária. A divergência se reprime com violência. Então temos que garantir um estado democrático. Eu gostaria muito que a única possibilidade de isso acontecer não fosse votando no PT, mas, nesse momento, é. 

Então vou votar nessa direção.

Vamos nos organizar. Parte das coisas que eu acredito hoje em dia é que temos muito mais força do que acreditamos ou dizem para gente. Se cada pessoa se reconhecer nesse lugar de fazer algo, não precisamos ficar tão imobilizados enquanto os governantes fazer o que querem em seu próprio benefício. Mas, para que este poder possa ser reconhecido e atuado socialmente, temos que ter liberdade para isso. Para começarmos a mudar esse quadro, sem ser através de uma postura que possa causar ainda mais estragos na nossa sociedade, talvez a solução não possa ser feita apenas por um político, um partido ou um grupo. Enquanto estamos nos dividindo, estamos sendo facilmente conquistados. Essa receita é antiga. Mas podemos nos unir e pensarmos em criar algo diferente.


Vamos todxs nos implicar na “solução” desse problema?

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A infeliz vitória de Bolsonaro



Semana passada acordei assustado. Tive um sonho em que Bolsonaro era eleito no primeiro turno com uma vantagem significativa e confortável para o mesmo que aparecia na televisão com um ar de “eu já sabia”. O estranho foi que, no sonho, tinha um quê de resignação triste na minha resposta a esse resultado. Porém, ao acordar, eu estava sobressaltado e sem acreditar. Até que me dei conta que foi “apenas um sonho”. Ao relatar o sonho para pessoas próximas, algumas comentaram que, apesar do possível absurdo que seria isso, achava que não era tão irreal assim essa possibilidade.

Tenho ficado mais afastado de alguns debates mais calorosos em relação à presidência. Inclusive participo das redes sociais e acompanho em silêncio e fico tecendo algumas considerações comigo mesmo e com poucos amigos mais próximos.

Observando as ações e reações de todos os lados de uma boa parte das pessoas que está mais envolvido e empenhado nessa seara política atual, me vejo diante de um campo de batalha onde tem muita gente batendo e apanhando, e encontrando justificativas para bater mais, xingar mais, desmerecer mais, humilhar mais, odiar mais, etc.

Volto a pensar no meu sonho. Nem de longe acredito que ele é premonitório, que estou prevendo o futuro. Tenho muito mais uma perspectiva de que os meus sonhos revelam mais de mim mesmo, nos meus processos de autoconhecimento, do que qualquer outra coisa. No entanto, ainda assim, fiquei meditando um pouco sobre ele e lembrei de outro texto que já escrevi nesse blog:

Eu não sei se ainda é difícil para as pessoas que vão votar em Bolsonaro perceber que muitas das falas dele trazem uma energia de ódio. Falo em energia porque, quando falamos de discurso, parece que ficamos apegados ao conteúdo do que foi falado somente e não vemos que tem um tom, uma postura, vários gestos, julgamentos, preconceitos, juízo de valor, etc. Um conjunto de fatores que podem identificar o que aquelas palavras estão veiculando para toda a sociedade. Não acho que foi ele que inventou essa postura (como também sei que a corrupção no nosso país não se iniciou com o PT, ou só foi praticada por este partido). Acho que ele só está sendo um representante muito enfático de uma corrente de ódio que já estava na sociedade. Em alguns nichos mais declaradamente e, talvez na maior parte das pessoas, de maneira mais velada, menos explícita e mais encoberta. Acho que essa árvore do ódio já estava plantada no terreno do nosso país há muito tempo. Talvez valha a pena refletir, a partir de um ponto de vista histórico e sistêmico, como foi a nossa construção enquanto nação, o quanto as injustiças, as violências, as humilhações, exterminações, exclusões fazem parte da nossa herança sociocultural. Acho que todas as pessoas têm uma sombra e que, nos lugares mais escondidos dentro de nós, temos coisas que não gostamos de assumir para nós mesmos e, muito menos, para as demais pessoas. É muito provável que, devido ao fato de termos esse histórico, carreguemos muitas marcas em nossas vidas. Talvez todxs tragam muito sofrimentos dentro de si e isso também nos constitua enquanto sujeitos nesse tempo atual. Cada vez mais acredito que o que vivemos enquanto sociedade está vinculado a este passado coletivo, como também às biografias de cada um individualmente. Acho que é necessário que olhemos para dentro da gente. Em outro momento escrevo a minha perspectiva sobre a relação entre as nossas vidas, nossas dores e traumas, nossas lutas sociais e como isso pode afetar na maneira em como nos posicionamos nessas lutas. Não caberia aqui...rs

Voltando mais para o tema principal. Como falei no texto citado anteriormente, me preocupa como este clima de ódio e intolerância está espalhado em todos os lugares atualmente, incluindo os corações e discursos das pessoas que se sentem “lutando” contra o “fascista, opressor, machista”, etc. Se eu vejo o Bolsonaro como representante dessa energia, me parece que quando as pessoas que se identificam com a esquerda - ou com os valores historicamente defendidos por esta - se contagiam por este clima de ódio, sinto que ele se fortalece. Sempre achei que o maior perigo que corremos atualmente não é pela pessoa, ou figura pública do Bolsonaro, e sim pelas ideias e o clima de ódio que elas propagam. No entanto, me parece que uma boa parte das pessoas focaram na figura dele e se esqueceram que a intolerância que ele representa é que pode realmente prejudicar. Acho que, quando o foco foi para ele, muitas pessoas deram vazão a toda raiva e intolerância que também estavam contidas nelas com a justificativa de combater o mal, o fascismo e a intolerância.

Não sei se eu sou muito romântico, utópico, idealista ou alienado. Mas tenho, de verdade, uma dificuldade de entender como iremos combater o ódio e espalhar o amor, sendo agentes de toda essa onda de ódio que está sendo disseminada por todos os cantos. Tenho dificuldade de entender que, se chega para mim uma pessoa cheia de ódio, é eu respondendo com mais ódio ainda que irei melhorar essa situação. Ao meu ver, combater ódio com ódio gera mais ódio (essa frase me pareceu meio redundante... mas acho que não percebemos isso) E se o Bolsonaro está representando esse movimento, sinto que, independente do resultado das urnas no primeiro e segundo turno, ele já venceu. Conseguiu provocar em todo mundo, seja quem o apoia, ou quem está lutando contra ele, um clima de separação, desamor, desumanidade e exclusão do diferente. O pior que esta separação não se direciona somente a ele, mas se estende aos eleitores dele também. Não acho que todxs os eleitores de Bolsonaro se encaixe no perfil que muitas pessoas estão rotulando e generalizando. A sociedade é tão complexa que sinto que é muito raso tentar compreender todo o jogo de forças que está atuando nessas eleições de modo mais simplista.

Lógico que já escuto o que muitas pessoas já colocaram que não se pode tolerar o intolerante, deixar com que os discursos de ódio sejam propagados em nome da liberdade de falar. Não estou falando disso. Não acho que não temos que nos posicionar a favor do que acreditamos. A minha dúvida é se só podemos fazer isso sendo movido pelos mesmos sentimentos que estamos tentando combater. Ao meu ver, se existe uma árvore de ódio dentro da nossa sociedade, mesmo que parecendo que não, quem está lutando contra o “Coiso” (juntamente com tantos apelidos que também são desumanizadores) usando das mesmas “armas” que ele costuma usar – mesmo que o objetivo seja para não deixar os opressores passarem – estão regando e adubando esta árvore com a sua energia de guerra.

Deve existir alguma forma de se posicionar e se unir para construir uma sociedade mais justa e igualitária para todxs sem ser movido por esta energia. O brasileiro é visto como um povo tão criativo, mas parece que estamos mais propensos a dar vazão a estes sentimentos que, mesmo tendo componentes e justificativas diferentes, acabam reforçando este campo de batalha que está posto. Parece que estamos meio cegos de medo e de raiva. 

Vejo que mudar uma sociedade não passa somente pela escolha de candidatos aos cargos públicos. Essa parte é muito importante e acho que temos que debater e refletir muito sobre isso. Porém, tenho pensado que também é um ato de resistência política, com o objetivo de mudança, não ceder a esta tentação tão tentadora de pagar com a mesma moeda todas as violências sentidas na pele. A vida vai continuar depois das eleições. Acho que até poderemos evitar que o Bolsonaro se eleja presidente – seja pela grande mobilização das mulheres, pela tentativa dos votos estratégicos, pela campanha nas redes sociais, etc. – mas, se o saldo desse combate for o aumento de ódio de todos os lados, me parece que é uma questão de tempo para que tenhamos que estar nos enfrentando novamente, seja com ele mesmo ou com tantos outros que sairão fortalecidos nesse processo de fazer do ódio o motor da nossa vida social.

Talvez seja necessário uma reflexão muito profunda de todas as pessoas – incluindo as que se dizem mais humanizadoras e tolerantes: para se reconhecer o quanto estamos alimentando esse ódio entre nós mesmos; para que não tenhamos que escrever capítulos ainda mais obscuros na nossa história; para que não tenhamos que descer ainda mais profundo nesse poço,  para que possamos sair desse maniqueísmo raivoso de ver somente no outro a sombra do mal, violência e da intolerância que também nos habita.

Tem um trecho de uma música que eu gosto muito e que a Clara Nunes canta:
"Só quem mexe na terra
  Sabe o cheiro do chão
  Só quem faz uma Guerra
  Sabe o gosto da Razão"

Gosto muito de acreditar que já temos exemplos e conhecimento suficientes para não termos que criar uma guerra maior do que a que já está posta para podermos recordar e valorizar a importância da razão para a manutenção da sociedade.

Torço sinceramente que Bolsonaro não se eleja. Acho que isso seria uma vitória temporária. Votarei intencionando isso. Contudo, sinto que, se cada um não fizer a sua parte dentro de si, essa eleição não vai ser o mais importante no rumo que daremos aos próximos passos da nossa nação. Que possamos ter discernimento e sabedoria para lidar com tudo isso.

PS: Sei que tem muitas pessoas que acham que o clima de ódio atual foi gerado pelo PT e pela esquerda. Isso daria uma boa discussão, discordo desse ponto de vista, mas quis focar no candidato à Presidência por ele ser um representante maior de um movimento.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Muro do Silêncio é feito de que?


O “Muro do Silêncio” é feito de que?

O objetivo geral do Projeto Revelando-Ser é desconstruir o “muro do silêncio” que existe em torno das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente quando eram crianças ou adolescentes.

Como tenho citado sempre, muito teria para ser falado acerca disso, porém vou introduzir alguns elementos que podem ajudar a entender melhor o que compõe esse muro. Importante ressaltar que vou falar de três aspectos de maneira separada, mas é muito importante que se saiba que essas três esferas só estão separadas aqui para, didaticamente, facilitar a compreensão. Na “vida real”, esses aspectos estão contidos um dentro do outro, entrelaçados, um constituindo o outro, reforçando-se mutuamente, o que dificulta ainda mais a saída do isolamento que o muro do silêncio gera na vida de algumas pessoas que foram abusadas sexualmente.

Ao se aprofundar e visualizar a metáfora, me deparo com pessoas diante de um muro bem alto e extenso, cheio de tijolos dificultando a “passagem”, a “comunicação com outras pessoas” e, até mesmo, o “reconhecimento do que existe para além dele mesmo”, o que existem em sua volta. Passo a “escutar” muitos dos relatos que já chegaram até mim sobre como é difícil falar sobre o abusos sexuais sofridos e o isolamento que isso gera em cada pessoa. Eu divido, por ora, esse muro em três camadas, desde a base até o topo, que correspondem a diferentes esferas da vida de quem foi abusado sexualmente há anos, ainda sem saber o que considerar base, meio e topo do muro:

  1. Esfera individual;
  2. Esfera familiar;
  3. Esfera sócio-cultural.

Esfera Individual - Tenho falado um pouco sobre essa camada em textos anteriores: http://portaisdeuniao.blogspot.com/2018/07/tempo-delicadeza-e-profundidade.html ;
Vejo aqui toda a dificuldade que as próprias pessoas que foram abusadas sexualmente têm de entrar em contato com a sua experiência. Em praticamente todos os casos que atendi as sensações que as pessoas experimentam ao lembrarem dos abusos sexuais não são nem um pouco agradáveis. Muitas pessoas passaram por momentos em que parecia que  elas não iriam suportar lidar com aquelas lembranças e as emoções que aparecem diante delas. Algumas pessoas inclusive não lembravam dos eventos abusivos da sua vida. Ou seja, a pessoa pode criar um muro do silêncio em volta da dor, em volta da ferida que ainda está aberta e latente, não conseguindo revelar nem para si mesmo o quanto aquela situação afetou e ainda afeta a sua vida. Muitos sentimentos podem dar suporte para este silêncio: vergonha, culpa, medo, raiva, mágoa, abandono, rejeição, exclusão, traição, sentirem-se sujas, falta de confiança em si e nos outros, etc. Quando o abuso foi cometido por algum familiar muito próximo, esses sentimentos se misturam com tantos outros, o que pode gerar uma confusão, contradição “dentro” da pessoa.

Esfera Familiar - Agora pensemos que a pessoa abusada conseguiu reconhecer / olhar para esta experiência - que parecia estar somente no passado, mas que se apresenta de maneira bem contundente no presente -  mesmo que ainda com muito sofrimento. Logo em seguida, outra camada de silêncio apresenta-se com o poder de abafar aquilo que está emergindo de maneira ainda muito incipiente: os vínculos familiares.

Como minha família reagiria se eu contasse? Quais as consequências disso? Vou prejudicar a minha família? E se eles não acreditarem em mim? Se eles acharem que a culpa é minha?

São tantas questões, tantas possibilidades das coisas “piorarem” para a pessoa que foi abusada que muitas vezes ela não sabe o que fazer com esse segredo. Muitas vezes a saída é continuar em silêncio, sem contar para ninguém. Porém, essa situação pode piorar na medida em que ela entra mais em contato profundo com o conteúdo do abuso, pois, agora, não dá para fazer de conta que nada aconteceu e continua acontecendo dentro dela. A tensão pode aumentar ainda mais e se tornar mais explícita do que quando a pessoa tentava viver a vida sem olhar para isso. Quando o abuso é praticado por um familiar, a própria rede de apoio familiar pode não querer olhar para a violência, porque ela fica fragilizada, dividida, sem saber que lado tomar, o que fazer. Muitas vezes a própria família prefere que as pessoas abusadas continuem em silêncio. “Já silenciou isso por tanto tempo! Por que mexer nisso agora?!”

Lembro agora de uma pessoa atendida por mim  e que me relatou que sempre lembrou da situação do abuso, mas nunca tinha parado para realmente sentir tudo que ele representou na vida dela. O abuso foi cometido por um familiar bem próximo e ela teve que ficar convivendo com o mesmo porque ele morava perto da sua casa. Ao trabalhar este conteúdo na terapia, a pessoa se deu conta de que foi necessário ela não olhar para o abuso sexual ao longo daqueles anos todos para ela poder continuar convivendo com a sua família. Quando a terapia começou a mexer nesse assunto de maneira mais profunda, a pessoa sentiu que quanto mais ela ouvia os seus próprios sentimentos em relação aquele drama, que também era familiar, menos ela conseguia “funcionar bem” dentro da família. Era como se, para ela, conviver com a família implicava em não olhar para o abuso. Mas ele teve que ser olhado e isso implicou em se afastar da família.

A imagem que me vem é de uma festa de família em uma casa bem grande e que quando a pessoa que foi abusada vem chegando, ela tem que deixar do lado de fora da casa uma experiência que para ela é significativa. Uma parte do ser dela tem que ser alienado de si mesma para poder estar com as pessoas que ela ama (muitas vezes incluindo o autor/a do abuso). Mas o preço dessa alienação pode ser caro para a pessoa ao longo da vida e, ao não querer mais sustentar essa cisão de si mesma, a pessoa pode não se sentir conseguindo conviver com aquelas pessoas. Ela pode precisar se isolar e sentir uma solidão que não é tão novidade assim, pois, na verdade, ela sempre se sentiu solitária, de maneira inconsciente, após o abuso que ela nunca compartilhou com ninguém. Essa solidão pode se tornar ainda mais concreta e isso não é fácil.  

Esfera sócio-cultural - O abuso sexual, apesar de parecer ser um evento individual e/ou familiar, acontece dentro de um “tempo e espaço” social e cultural. Não tem como se discutir o abuso sexual, a sua prevalência e ainda mais o muro do silêncio em volta dele, sem situá-lo dentro dos valores, dos discursos, das relações de poder, opressões, do lugar que foi e ainda é dado para a família, crianças, adultos, homens e mulheres, sexualidade, violação de direitos, etc. ao longo dos anos passados. Ainda mais quando estamos situando o foco do projeto em pessoas adultas que foram abusadas sexualmente há 15, 20, 30 ou mais anos.

Atualmente muitas pessoas que passam por alguma situação de violência encontram imensas dificuldades para denunciar essa violência e serem acolhidas nos seus sofrimentos. O nosso contexto socio-cultural ainda tende a negar a importância de eventos violentos que acontecem com determinados grupos da sociedade, fazendo de conta de que eles não existem, e se existirem não são tão sofridos assim. A famosa era do “mimimi” que tanto ocupa falas e discursos nas redes sociais.

Se essa dinâmica acontece atualmente - dentro de um contexto onde a violência é mortal, gritante, alarmante, expressa em números, em imagens de tantos vídeos, e ainda assim é minimizada por essas relações desiguais entre atores sociais diferentes - imaginem o desafio que é falar de uma violência que aconteceu há tanto tempo, muitas vezes sem provas, com lembranças confusas, com pessoas que podem até já terem morrido. Se uma mulher que foi agredida, violentada e morta por algum homem de maneira brutal (como tantas que, infelizmente, chegam ao nosso conhecimento) ainda é julgada, culpabilizada e negada em sua humanidade, qual a mensagem que, implícita ou explicitamente estamos passando para outras pessoas que queiram falar das suas violências do passado. Talvez seja difícil para as pessoas compreenderem que para uma pessoa que demorou anos para falar de um abuso sexual do passado, ser julgada da forma que é comum hoje em dia, pode ser ainda mais violento e desestruturador. Como se ela nunca tivesse o direito de querer sair daquela prisão, como se não tivesse “espaço social” para aquela dor e que ela tem que carregar esse fardo sozinha consigo mesma como fez tão bem ao longo dos anos. A que custo só a própria pessoa sabe!

Ainda bem que estão aparecendo cada vez mais situações nos meios de comunicação que retratam essa situação das pessoas adultas que foram abusadas. Porém, sinto que, enquanto sociedade, ainda não estamos podendo reconhecer o quanto isso aconteceu e ainda acontece. Parece difícil atualizar o conceito de família e reconhecer que em muitos casos ela não é, somente, uma célula social protetora, nutritiva e que promove o crescimento das suas crianças. Ela também pode ser violenta e é importante que possamos lidar com isso para cuidar das pessoas que foram se perdendo ao longo do caminho.

Novamente sinto que muito ainda poderia ser falado...rsrs
Mas fica o convite para que as pessoas que leiam possam perguntar, questionar, debater.
Estamos promovendo encontros regulares para debater sobre esses assuntos.
Mais informações no nosso site www.revelandoser.org.
Que possamos ser agentes de mudança na desconstrução desse muro do silêncio no intuito de criar uma sociedade mais acolhedora e inclusiva para todxs.


terça-feira, 21 de agosto de 2018

Revelando-Ser: Juntando peças de um Quebra-Cabeça


Tenho feito algumas publicações sobre o Projeto Revelando-Ser para compartilhar com as pessoas sobre um assunto tão pouco falado na nossa sociedade: Pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e/ou adolescência.

Apesar de saber que as pessoas tem menos disponibilidade de ler textos longos nos dias atuais, tenho optado por escrever desta forma porque sinto que é o que contempla melhor a complexidade das coisas que quero abordar. O curioso é que posso afirmar que ainda tenho escrito muito menos do que eu poderia falar de cada texto. Sempre termino com a sensação de poder trazer ainda mais coisas.

Outra característica dos textos é um formato mais livre e informal na maneira de falar sobre os abusos, sem muita teorização, com quase nenhuma citação das referências, autores, etc. Tenho pautado os meus textos a partir da minha experiência com as pessoas abusadas para trazer elementos que sinto que são significativos para que as pessoas compreendam um pouco mais sobre essa temática. Como quero falar com pessoas que não estão, necessariamente, na academia, tenho gostado de uma escrita mais coloquial mesmo.

Porém, ao mesmo tempo, sinto a vontade de contribuir com essa discussão de maneira mais profunda também. Talvez essa necessidade implique em poder falar mais demoradamente de cada coisa que observo, como também pode se desdobrar em um diálogo mais sistemático com os autores, com os textos acadêmicos. 

Desde que tenho pensado sobre isso, venho gestando a ideia de escrever um livro sobre a temática. Um livro onde eu possa juntar estas duas contribuições citadas no parágrafo anterior. Penso nesse projeto como algo muito para o futuro ainda.

Por ora, continuarei com meus textos por aqui, como uma forma de ir juntando as peças desse quebra-cabeça tão complexo. Os textos soltos, escritos de maneiras mais pontuais, sem uma sequência muito bem delineada, servirão como adubo, matéria-prima para o florescimento, uma construção mais organizada que também possa dialogar com outros setores da sociedade e, quem sabe, contribuir ainda mais com a desconstrução do "muro do silêncio" que envolve as situações de abusos sexuais na nossa sociedade.

Quem quiser contribuir, participar desse processo, pode interagir, perguntar, compartilhar coisas por aqui também. Tudo serve de material nessa construção. 

Vamos juntxs?!

domingo, 5 de agosto de 2018

No Limite do Silêncio


No Limite do Silêncio
Este título é de um filme muito profundo sobre o abuso sexual e seus desdobramentos. Estaremos realizando um cine-debate sobre ele no início de setembro. Ao assistir novamente ao filme, fiquei com este mote no pensamento:

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?

Como falei em outro momento, já venho acompanhando terapeuticamente várias pessoas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência e que me procuraram para iniciar a psicoterapia. É importante frisar que, tal como tem descrito em alguns estudos acadêmicos, a demanda do abuso sexual não era a “demanda principal” que fazia com que estas pessoas me procurassem. O que aconteceu, em praticamente todos os casos, foi a pessoa vir com várias demandas diferentes e o abuso sexual aparecer posteriormente como algo importante para o processo, em alguns casos se tornando até no ponto principal da terapia.
Vejo essa situação por dois prismas diferentes no momento, um parecendo mais frequente do que o outro:

1 - A pessoa que foi abusada sexualmente reconhece que o abuso é algo importante a ser trabalhado, porém, não é fácil para ela tocar nesse conteúdo, principalmente com uma pessoa que ela não conhece, nunca viu e que ainda não estabeleceu uma relação de confiança onde ela sinta que pode se abrir para falar de algo que gera tantos sentimentos contraditórios dentro dela;
2 - A pessoa que foi abusada sexualmente não tem ideia do quanto aquela situação tem influenciado sua vida. Muitas vezes, a pessoa não lembra muito bem e, como ela sobreviveu e não fala mais disso, parece não ser importante tocar nesse assunto (sinto como esta situação mais frequente).

O que aconteceu, em cada processo foi que, a própria terapia - ao cuidar dos assuntos que estavam mais emergentes no aqui e agora - trouxe à tona a situação do abuso sexual naturalmente, sem termos que ir atrás dele intencionalmente, fazendo com que tivéssemos que nos debruçar mais sobre esse passado.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Já tive um cliente que demorou dois anos de processo para falar sobre o abuso sexual. Quando falo assim, parece até meio estranho, pois tivemos que re-significar tudo que tinha sido falado até então e, com o decorrer do processo, ele chegou à conclusão de que estávamos falando do abuso o tempo todo, porém, sem termos consciência de que todos os conteúdos falados já faziam parte dos desdobramentos do abuso. Passamos ainda alguns anos trabalhando em cima dessa "descoberta".

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Atendi uma cliente que, depois de algum tempo de terapia, também trouxe a situação do abuso na sua vida. Porém, ela tinha reações físicas muito fortes ao apenas cogitar falar sobre este assunto na terapia. Foi uma experiência muito significativa para mim. Ela vinha duas vezes por semana para a psicoterapia, e demonstrava que queria falar sobre o assunto, porém, ao começar, a sua vista ficava embaçada ou escurecia, sentia muitos calafrios, falta de ar, etc. Eu tive que reconhecer que tocar naquele assunto estava para além da minha disponibilidade enquanto terapeuta, bem como também para além da sua vontade consciente enquanto cliente. Com o passar do tempo, foi possível ver estas reações se acalmando mais e pudemos vivenciar momentos de intensa dor, em que percebemos o que aquelas reações estavam evitando.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Estamos realizando os atendimentos psicoterapêuticos às pessoas que têm procurado o Projeto Revelando-Ser. Algumas destas pessoas vieram para alguma roda de conversa, ou palestras do projeto. Ao atender esta pessoas, foi possível perceber uma diferença no que se refere a este Limite do Silêncio. As pessoas que eu atendi no meu consultório particular, como exemplifiquei rapidamente acima, me procuraram para falar de outras demandas e, com o tempo, começaram a falar sobre o abuso sexual. Sinto que durante este tempo foi possível construir uma relação de confiança, acolhimento e aceitação que foi de fundamental importância para se adentrar neste terreno tão delicado posteriormente. Algumas das pessoas que procuraram o projeto e que demonstraram interesse na psicoterapia chegaram de uma forma diferente. Elas estavam vindo para um projeto em que o abuso sexual se anunciava desde o momento em que ela entrava em contato pelo telefone. Ao chegar à minha sala, a pessoa já estava dizendo que passou por aquilo, sem ter nenhum vínculo maior com aquele que iria escutar coisas muito profundas e dolorosas da sua vida. É como se aquela ferida já estivesse totalmente aberta e exposta e percebi que alguns clientes se sentiam meio que na obrigação de falar sobre o assunto, não somente porque ele estava muito emergente na sua vida, mas também porque o projeto é sobre este assunto. Sinto que estas situações podem ter gerado uma dificuldade adicional para a pessoa conseguir sustentar a sua decisão de ir se revelando aos poucos. É como se o primeiro atendimento não respeitasse este Limite do Silêncio, colocando a pessoa em um lugar que exigia mais do que ela estivesse podendo dar naquele momento. Perceber esta dinâmica nos primeiros atendimentos foi importante para que eu pudesse verbalizar para os clientes seguintes, no primeiro atendimento, que não era obrigatório falar do abuso sexual, que eu estava disponível para estar com eles no que fosse possível falar naquele momento. Em uma ocasião senti o quanto falar isso para uma cliente no primeiro atendimento a deixou mais aliviada e mais segura de que não precisaria se expor obrigatoriamente ou passar por cima de si, dos seus limites, para estar na relação terapêutica comigo. O que aconteceu em seguida é que o abuso sexual ainda apareceu nas primeiras sessões, mas com um ritmo que estava sendo mais cadenciado pelo cliente do que por mim ou pela “Instituição”. Sinto que, mesmo que deixemos os clientes à vontade para não falar logo sobre o abuso, eles vão querer trazer isso, afinal de contas, a maioria deles não suporta mais ficar com esse segredo só para si, já fazem isso há muito tempo. Para mim é muito mais uma demonstração de respeito, uma demonstração de delicadeza e cuidado com o tempo, limites e ritmo no processo de revelação de cada um.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Sinto que as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência criam um certo perímetro de acesso a algumas experiências que se passam consigo como um mecanismo de sobrevivência psicológica. Para mim, enquanto terapeuta, cabe honrar esse perímetro, reconhecendo-o como importante e aceitando que ele precisou estar aí. Porém, este perímetro, ao mesmo tempo em que protege o cliente de uma possível desestruturação, também limita, também o mantém prisioneiro dos próprios sentimentos, podendo se tornar uma experiência tão claustrofóbica que também coloca em risco a própria sobrevivência deste cliente. Então, junto com a aceitação desse perímetro, reconheço toda a vida e potencialidade que podem estar abafadas por este modo de funcionamento rígido. Garantindo a presença das atitudes facilitadoras (Carl Rogers), posso convidar o cliente a enfrentar esses sentimentos e medos, a descer nesses porões escuros e assustadores, acreditando e reconhecendo que ele pode ser muito mais do que tem sido sem ter um apoio para atravessar esse deserto de tantos anos.
Interessante como esse texto faz um link importante com o anterior:

Meu desejo sincero com o Projeto Revelando-Ser é que possamos facilitar que estes silêncios sejam cuidadosamente revelados para que tanto as pessoas que foram abusadas, como também as que não foram, possam reconhecer o quanto é importante abrir espaço para cuidar destas feridas antigas, possibilitando que seja possível olharmos para um futuro com mais cuidado, leveza, esperança e inteireza.

Vamos falar mais sobre isso no Cine-Debate?




sexta-feira, 13 de julho de 2018

Tempo, Delicadeza e Profundidade


A dimensão do TEMPO tem aparecido de forma muito significativa ao se trabalhar com a temática das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente quando eram crianças ou adolescentes:

1 - A pessoa tinha quantos anos quando aconteceu o abuso?
2 - O abuso aconteceu uma vez apenas ou se estendeu por mais TEMPO? Em alguns casos a pessoa foi abusada por anos.
3 - Depois de tanto TEMPO, é possível resgatar o que, de fato, aconteceu?
4 - Por quanto TEMPO a pessoa ficou em silêncio com aquele segredo guardado só para si?
5 - Quanto TEMPO leva para uma pessoa conseguir falar sobre isso na terapia?
6 - Quanto TEMPO pode durar o processo de compreender o impacto do abuso sexual na minha vida?
7 - Depois que se reconhece o abuso, quanto TEMPO demora para se ficar em paz com isso?

Ainda se teriam mais perguntas.

Como escrevi no texto anterior - ao convidar as pessoas para conhecerem o projeto - compreender o abuso sexual não é algo simples. Compreender os efeitos, muitas vezes contraditórios, em cada pessoa, não é simples. Muitas vezes é preciso de TEMPO para se adentrar neste terreno incerto e muito obscuro por vezes.

Porém, o assunto em si mexe muito com os afetos de todas as pessoas que escutam falar sobre ele. Difícil não se ter uma opinião ao ouvir relatos de abusos sexuais, muitos deles praticados dentro da própria família da vítima. Ao realizar rodas de conversa, palestras, encontros sobre o tema no projeto Revelando-Ser, não é raro encontrar pessoas que tentam dizer de maneira mais rápida o que aconteceu na vida de cada um, como as pessoas abusadas deveriam se sentir, ou até o que elas deveriam fazer com as situações que passaram.

Toda vez que escuto essas intervenções, lembro da dimensão do TEMPO novamente. Muitas vezes, nem a própria pessoa que vivenciou o abuso consegue entender o que aconteceu com ela. Muitas vezes a própria pessoa tem uma perspectiva racional sobre quem ela é e o que deveria fazer. No entanto, ainda assim, ela não consegue realizar essas mudanças de perspectivas de maneira tão rápida. "Sinto que existe um profundo descompasso entre o que a minha cabeça pode produzir e o quanto o meu coração consegue acompanhar". Muitas vezes essa pessoa passou muito TEMPO sentindo várias coisas, de maneira muito profunda e, ao ouvir outra pessoa - que não sentiu o que ela sentiu e não viveu o que ela viveu - falar de maneira mais simples sobre quem ela é ou deveria ser, a pessoa que foi abusada pode se sentir ainda mais isolada e distante de si.

Ela, mais do que ninguém, queria “acabar” com aquele sofrimento.
Ela, mais do que ninguém, queria lidar com o seu passado de maneira simples e rápida.
Ela, mais do que ninguém, gostaria de saber o que fazer e fazer logo, não perdendo nem mais um dia da sua vida pensando e remoendo essas experiências tão indigestas.
Mas, ainda assim, ela não tem conseguido e isso precisa ser compreendido, ou pelo menos aceito, pelas demais pessoas.

Quando queremos ajudar as pessoas que passaram por esse sofrimento, ou algum outro sofrimento muito profundo, talvez fosse importante lembrar que alguns assuntos quase que exigem uma delicadeza para serem tocados de maneira construtiva. Dependendo da reação de quem ouve um relato sobre um abuso sexual, a pessoa, que em muitos casos precisou de muita coragem para falar sobre isso, pode se sentir mais livre ou ainda mais pesada e desesperançosa.

Esse texto me lembrou de uma experiência que vivi no Recanto do Ser, espaço que eu atendo. Temos várias plantas no nosso jardim, quintal e interior do Recanto. Há quase dois meses percebi que tinha uma planta num vaso que já tinha sido muito bonita, mas que estava desfolhando, ficando seca cada vez mais. Ela ficava numa área externa e tinha levado muita chuva durante dias. Apesar de não ter muita experiência com plantas, eu quis ajudar aquela. Ao me aproximar eu vi que a terra estava totalmente encharcada e que o buraquinho do vaso em que a água deveria sair, estava fechado por raízes da própria planta. Provavelmente a planta estava precisando se expandir para além daquele vaso e acabou fechando o lugar por onde a água deveria sair. Logo vi que teria que tirar ela dali, mas também me dei conta que não seria tão fácil ajudar aquela planta. Eu estava com uma certa pressa devido a muitas coisas que tinha para fazer. Porém, entendi que se eu tentasse tirar ela do vaso rapidamente, provavelmente iria parti-la ou não conseguiria tirar ela com as raízes que seriam fundamentais para ela conseguir voltar a se desenvolver em um terreno mais propício.

Comecei a lembrar das pessoas adultas que foram abusadas na infância ou adolescência. Muitas vezes o terreno onde ela cresceu (sua história) não foi o mais facilitador para que ela se desenvolvesse em todo o seu potencial. Para eu poder ajuda-la de verdade, talvez isso me exija um maior tempo, uma maior delicadeza de levar em conta as suas raízes, talvez eu tenha que ir mais profundo, para poder entender e facilitar a mudança de um lugar adoecido, encharcado, sufocante para outro lugar mais fértil, com mais liberdade e espaço para ela voltar a crescer. Se eu chegar com a minha pressa em dizer quem a pessoa é ou o que tem que fazer, pode ser que eu só esteja pegando no caule dela e puxando ela para cima, talvez um movimento tão brusco para ela, que faça com que o tronco quebre ou se desvincule das suas raízes e seja ainda mais difícil para ela se reorganizar no futuro.

Infelizmente a plantinha não sobreviveu com o TEMPO, mesmo que, na medida do meu possível, tenha sido retirada com muito cuidado e estando num terreno muito melhor e sendo melhor cuidada posteriormente. Isso me remete ao TEMPO novamente, pois, talvez, eu e outras pessoas que frequentam o Recanto levamos muito TEMPO para tentar ajuda-la no lugar em que ela estava.

Poderia falar mais, mas também lembro que o TEMPO das redes sociais não permite textos tão longos.

Volto a lembrar das pessoas adultas. Penso quantas estão sufocadas nos seus silêncios, nas suas águas (emoções), vivendo um ambiente, externo ou interno, que impossibilita que elas cresçam e que ou não são vistas há TEMPO, ou são tratadas sem a delicadeza e profundidade necessários para uma volta à vida. Como a vida não é conto de fadas, algumas pessoas podem ter se isolado por tanto TEMPO que podem não permitir receber tanto uma ajuda. Porém, se cada pessoa se tornar mais aberta e receptiva para olhar, seja a sua própria história, ou a história de um familiar, cônjuges, filhos, etc. com essa delicadeza, sinto que estaremos construindo um espaço social que ajude a não se ter esse desfecho mais trágico.

O Revelando-Ser tenta trazer essas reflexões para que possamos nos disponibilizar a cuidarmos mais de si e dos outros.

Vamos dedicar um pouco mais de TEMPO para isso?


domingo, 10 de junho de 2018

Psicoterapia como uma busca de autoconhecimento





Primeiramente, um pouco de mim:
Durante anos da minha vida eu fui revoltado e, ao mesmo tempo, lamentava muito alguns eventos traumáticos que aconteceram comigo na infância. Durante anos me sentia culpado ou achava que tinha alguma coisa de errado comigo por passar por tantas coisas e achar que os meus amigos tinham uma vida “normal”, sem muitos sofrimentos. Eu me perguntava sobre qual o sentido disso tudo. Tudo era muito confuso para uma criança com mais ou menos 09 anos de idade. Sem entender bem o que se passava comigo, já demonstrava alguns comportamentos de risco,  muita agressividade, muita introspecção e um sentimento de vazio grande.


Por indicação da minha mãe, tudo isso ganhou espaço para ser falado, experimentado, chorado, desabafado num processo terapêutico quando eu estava com mais ou menos 13 anos. Ter encontrado esse espaço naquele momento da minha vida foi fundamental para que alguns desses comportamentos, que já estavam ganhando um espaço maior na minha vida, pudessem ser digeridos, elaborados, re-significados, me permitindo dar um destino diferente para tudo isso.


Aos 15 anos, por perceber tantas transformações que estavam acontecendo dentro e fora de mim, decidi ser terapeuta, decidi que queria possibilitar às pessoas  um espaço tão importante como aquele estava sendo para mim. Engraçado que eu pensei inicialmente em fazer isso por prazer, por achar que aquilo era algo muito profundo e necessário. Só depois que pensei: “Se eu for psicólogo, ainda vou ganhar dinheiro para fazer isso! rsrs”


De lá para cá, tanto tenho estado constantemente em uma busca pessoal de autoconhecimento, bem como concretizei a minha decisão de adolescente e me tornei psicoterapeuta, me dedicando a escutar e trabalhar terapêuticamente com as pessoas há mais de 10 anos.


Ao saberem do meu entusiasmo pela psicoterapia, já me perguntaram se eu achava que todo mundo deveria fazer terapia. Na época eu estava bem convicto que sim, que o mundo seria bem melhor dessa forma. De uns tempos para cá essa percepção mudou um pouco, onde comecei a achar que a psicoterapia não iria “salvar o mundo”, mas que sim, o autoconhecimento é muito necessário para dar um sentido maior à nossa vida. Porém, ele não acontece somente dentro de um consultório de psicoterapia. Dependendo da busca e consciência de cada um, muitas experiências da vida podem ter um efeito terapêutico e serem muito profundas e contribuírem para uma existência mais plena para as pessoas. Apesar desta mudança de perspectiva, ainda continuo achando que a psicoterapia é um espaço profundo, potente, acolhedor, transformador e que pode estar disponível para as pessoas iniciarem essa busca.


Mas por que que você acha que o autoconhecimento é tão necessário?
Tenho acompanhado pessoas ao longo desse tempo e tenho percebido que estamos vivendo tempos muito difíceis, seja no âmbito mais pessoal, social, cultural, político, econômico, etc. Tempos de uma complexidade que deixa as pessoas atordoadas e confusas com tantas transformações, com um tempo que insiste em correr cada vez mais rápido, com tantas possibilidades diferentes de se estar no mundo, com um maior distanciamento entre as pessoas, com a convivência com tantas contradições, etc. As pessoas estão cada vez mais conectadas com o externo e sendo bombardeadas diariamente por tantos estímulos, tantas situações, emoções, conflitos e não encontram um lugar nessa Roda Viva para pararem um pouco e pensar como cada um está vivenciando tudo isso. Vejo pessoas que têm rotinas muito bem definidas e vivem a vida num certo “piloto automático”, onde é mais importante garantir certas coisas, do que pensar se realmente estão felizes e realizadas com a vida que têm vivido. As pessoas parecem não ter mais tempo para olhar para as suas emoções, principalmente as emoções que são consideradas negativas, e tentam viver como se conviver como se estas emoções não influenciasse as suas vidas. O aumento de pessoas que tomam remédios psiquiátricos me parece mostrar o quanto conviver com essas tensões, sem um olhar mais dedicado a se entender no mundo, pode ser adoecedor. Entretanto, ainda com esse aumento, muitas pessoas tomam apenas o remédio, não se dedicando a fazer uma psicoterapia que poderia ajudar na compreensão e na mudança de certos padrões mentais ou de comportamentos que estão pautadas em emoções não compreendidas que também interferem nesse funcionamento mais fisiológico (Faço essa distinção entre biológico, emocional, mental apenas sendo didático, pois no fundo acredito que o ser humano funciona como um todo organizado onde cada parte destas não estão separadas, se inter-relacionando). O remédio cumpre essa função de uma “cura” rápida, parecendo isentar as pessoas de se darem ao trabalho de olhar mais profundamente para dentro e querem só continuar fazendo o que já fazem. Porém se algumas emoções não são olhadas é provável que alguns comportamentos e consequências não mudem dentro da pessoa, apenas sendo contornadas, acalmadas pelo efeito da química dos remédios. Desta forma, é possível que muitas situações difíceis se repitam na vida da pessoa, não deixando ela ser feliz como ela almeja. Com o passar do tempo, a pessoa pode até entrar numa certa descrença na mudança porque não está entendendo que ela está tentando mudar a partir de um “lugar” que não garante a mudança real. Mas uma boa parte das pessoas escolherá - seja por dificuldades de se enfrentar, inconsciência ou por desconhecimento - sempre estar com os remédios por perto para conter esses desdobramentos de coisas que ela não aceita mexer.


Infelizmente digo que a profissão de psicoterapeuta se assemelha a uma parte da profissão de bombeiros. As pessoas não procuram a psicoterapia quando sentem que tem alguma coisa errada com a vida delas, ou quando sentem que não se conhecem, ou ainda quando estão vivendo uma vida meio sem sentido, ou quando sentem que estão dependendo emocionalmente de uma pessoa para viver. Estas situações não são importantes o suficiente para mobilizar uma boa parte das pessoas para buscar um cuidado maior consigo. Inclusive existe uma grande discrepância quando se fala de “cuidado consigo” entre o quanto se investe no cuidado físico, biológico, corpo, estética - coisas externas que dá para as outras pessoas perceberem - e o quanto se investe em cuidar mais da saúde mental. (novamente parecem ser coisas separadas, mas não são). No que se refere ao cuidado com a saúde mental, muitas pessoas só procuram a ajuda de um profissional quando a casa já está pegando fogo, quando já se está num desespero, quando já não se sabe mais como fazer para evitar entrar em contato com aquele sofrimento, quando já não se está mais querendo viver, quando as questões emocionais já estão se manifestando no físico, etc. Quando algo parece estar muito errado é que se pensa em como cuidar também desta esfera tão importante da vida. Mas uma situação de uma gravidade maior como estas não acontece de um dia para o outro. Muitas vezes os sofrimentos se arrastam por anos na vida das pessoas, até que se torne insuportável e as tragam para buscar uma forma de se cuidar e autoconhecer dando um outro lugar na vida para os sofrimentos.


Como eu falei na primeira parte do texto: Não faço ideia de onde eu estaria se não tivesse começado a ver certas coisa dentro de mim desde muito cedo. Atualmente, sinto que uma boa parte dos meus traumas foram re-significados e hoje olho para eles como tendo sido uma porta de entrada para me direcionar de maneira tão determinada para o lugar de ser terapeuta e ajudar tantas pessoas. Corro o risco de ser meio fatalista ao dizer que é provável que eu nem estivesse aqui escrevendo estas linhas. Facilmente eu poderia ter me perdido nas aventuras de adolescente crescendo em um bairro que me dava acesso a várias situações que colocaram minha vida em risco, como pude ver com amigos bem próximos.


Então apesar de não achar que a psicoterapia vai salvar o mundo, tenho me perguntado: Quem você tem sido sem refletir muito sobre você mesmo? Que comportamentos você tem sustentado na sua vida que não te deixam feliz ou te realiza e que você não parou ainda para tentar entender? Quantos sentimentos guardados não estão permitindo que você possa viver uma história diferente da que você já conhece, se mantendo refém de um passado que ainda não passou dentro de você porque não se deu ao trabalho de colocar para fora o que não te serve mais? Quem você tem o potencial de ser, mas que não se atualiza por nem acreditar que é possível mudar?


Ao escrever isso não estou querendo passar uma sensação de que tudo é lindo ao se fazer terapia ou buscar outra fonte de autoconhecimento. Se fosse assim, a psicoterapia seria muito mais procurada do que é. Para olhar para si mesmo, muitas vezes é necessário uma disponibilidade de encarar aquelas partes nossas que passamos a vida tentando esconder de nós mesmos. Não é simples. Poderia falar muito sobre isso. Fica para outro momento. Porém, se você entende que sem se compreender, você tende a continuar sendo quem você tem sido, qual o mal que existe em tentar encontrar outra forma de viver? Se “não der certo”, é provável que você continue vivendo aquilo que já estava vivendo. Porém, se “der certo”, muitas coisas podem mudar e você só saberá quando estiver vivenciando as mudanças.


Certa vez um grande amigo psicólogo falou que gostaria de viver num mundo onde não fosse necessário existir psicoterapeutas enquanto profissionais Um mundo onde as pessoas pudessem ter acesso a este tipo de relacionamento, de escuta, de acolhimento em praça pública, no meio da rua, no colégio, dentro de casa, na sociedade como um todo. Achei muito importante essa reflexão, inclusive para que o que se vivencia dentro do consultório não se encerre ali e que possamos buscar formas de nos relacionar mais saudavelmente no “mundo lá fora” também. Ainda não estamos nesse momento sócio-cultural, mas acho que podemos contribuir muito para uma mudança coletiva ao cuidarmos também da nossa biografia.


E aí, que tal se conhecer um pouco mais?