sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Dividir para ser conquistado: a projeção da maldade nos outros


"Quando vires um homem bom, procura imita-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo." Confúcio

Primeiro de tudo, pausa para respirar...rsrs

Agora senta que lá vem textão...

Muito se tem falado dos tempos sombrios que já estamos vivendo e que “os ventos” anunciam que ainda pode ficar pior.

Tenho tanta coisa pra falar, mas vou tentar organizar por partes.

Primeiramente queria deixar claro que vejo na possibilidade de Bolsonaro ser eleito presidente uma grande ameaça à democracia e vários valores fundamentais à manutenção do que chamamos de sociedade. Logo, o meu posicionamento será o de fazer o possível para que não precisemos chegar nesse “lugar” para aprendermos sobre o que quero apontar aqui. Meu voto no primeiro turno não foi no PT, por inúmeras razões que não vou citar agora. No entanto terá que ser no segundo turno por conta dessa ameaça que sinto que está rondando a nação. Não será um voto sem críticas, achando que era o melhor desde o início, tanto que não votei no primeiro turno. Será um voto a favor da possibilidade de se manter acesa a chama da liberdade, da mobilização, do debate, da crítica, do questionar o próprio governo – incluindo a prisão de políticos dos partidos onde seja constatado que crimes foram cometidos, etc. Muitas pessoas estão achando que ter esse receio é ser muito alarmista, que não é tão grave assim, que a democracia não está ameaçada. Pode até ser e quero muito acreditar que não chegamos, enquanto país, nesse nível de irracionalidade. Porém, repetir um episódio tão lamentável, perigoso e destrutivo é tão grave que eu prefiro não correr esse risco. O preço a ser pago pode ser muito alto.

Segundamente, no post anterior, estive falando sobre a energia de ódio que eu sentia e ainda sinto que Bolsonaro representa tão bem e o quanto eu achava que todxs estavam se contagiando, inclusive aqueles que estão lutando para não deixar essa energia se instaurar por completo no poder. Passado o primeiro turno, com os seus resultados e com as primeiras reações de muitos que vejo nas minhas redes sociais, sinto uma tristeza profunda e uma grande preocupação. Diante do resultado expressivo de Bolsonaro, inicia-se uma mobilização, por vezes de uma forma desesperada, para se obter votos para ambos os lados na corrida para se fechar o resultado no segundo turno. A polarização, que já não estava pequena, assume formas bem concretas e lidar com isso não é simples. Nessa busca, podemos não ver o quanto estamos, inconscientemente, alimentando o lado oposto.

Pausa para parecer que vou brincar com a cara de quem está lendo esse post, mas é sério.

Brinquei com algumas pessoas próximas que eu iria começar essa nova postagem dizendo que falaria sério sobre política e para isso traria, como pano de fundo, duas analogias muito acadêmicas (rsrsrsrs): o anime Dragoon Ball Z e a saga de Harry Potter.

Sobre Dragon Ball Z, eu peço a ajuda de pessoas que tenham assistido, de fato, o anime para me corrigir se eu estiver errado, pois eu não me lembro bem. A analogia que ficou para mim é o mais importante e não parou de vir à minha cabeça durante a ascensão do Bolsonaro nos últimos tempos. Tem um vilão no anime que se chama Majin Boo e, caso eu não esteja muito enganado, ele tinha uma característica interessante: conseguia absorver todo o poder de um golpe que era desferido contra ele e, consequentemente, saía mais fortalecido depois dos ataques. Quanto mais eu via as pessoas atacando Bolsonaro com o mesmo tipo de energia que ele representa, eu pensava: em algum nível estamos dizendo que a postura de ódio dele serve para fazer política. Vi muitos eleitores pró-Bolsonaro mostrando de maneira muito óbvia que era muito contraditório algumas pessoas ligadas à esquerda serem contra o radicalismo do candidato deles usando de uma postura tão odiosa quanto as coisas que ele falava. Sentia que no final rolava um: qual a diferença da lavagem cerebral e intolerância da direita para a esquerda. Inclusive vi algumas pessoas que tentavam se posicionar num lugar menos polarizado querendo dialogar com algumas pessoas da esquerda e eram taxados com várias generalizações, gerando uma mensagem implícita ou explícita de que também não era fácil debater com eles a partir de uma visão diferente. Geramos em muitos momentos um combate de “cegos e surdos” onde as pessoas deixaram de se ver, de se escutar enquanto pessoas. Movidos pela raiva, pelo medo, pelo desespero, começamos a ver inimigos por todos os lados  e, no final das contas, a energia de ódio só aumentou, alimentando diretamente quem mais está representando ela. Tentar lutar contra o ódio de quem eu considero fascista, odiando, estou dando a minha energia para ele, fortalecendo-o.

Mas aí entra uma dinâmica que tem a ver com o título da postagem: a projeção da maldade. Tenho a impressão, e algumas teorias psicológicas podem explicar isso de maneira mais profunda, de que não queremos reconhecer em nós o quanto temos aspectos dos quais não nos orgulhamos. Temos dificuldade em perceber que algumas coisas que criticamos fervorosamente no “outro” também estão dentro de nós, de maneira até mais escondida – podendo ser até mais perigoso, justamente por não termos consciência disso e podermos atuar no mundo movidos por estas coisas. Na vontade de sermos pessoas boas, não reconhecemos as nossas sombras e só conseguimos ver estes aspectos quando outras pessoas os apresentam e – a partir delas, nos “outros” – fica muito claro o quanto estas coisas são ruins. Segundo as teorias, todas aquelas coisas que negarmos estar em nós, teremos a necessidade de enfatizar no outro, como uma tentativa de não ver que elas também estão em nós.

Vejo isso todo dia no meu consultório atendendo às pessoas. Porém, sinto que esse movimento não acontece somente numa esfera individual. Acredito que essa dinâmica também permeia as relações sociais, entre os grupos diferentes. Partindo dessa percepção, vejo duas grandes projeções (devem ter várias outras) nesse momento político tão polarizado nos discursos da esquerda e da direita:

1 – Na esquerda vejo uma projeção em relação ao discurso de ódio. Falei isso nas minhas duas últimas postagens e continuo enfatizando a mesma coisa nesse momento. Mesmo que, nesse segundo turno, eu veja algumas mudanças nas falas das pessoas que estavam batendo tanto nos “fascistas” durante o primeiro turno.  Acredito piamente que as pessoas podiam estar querendo, de fato, evitar o que elas acham que seria uma tragédia ao permitir que Bolsonaro se eleja. Porém, junto com essa intenção, muito ódio que estava guardado “dentro” das pessoas veio à tona com esses embates. Tanto ódio não foi gerado “somente” porque o candidato falou coisas absurdas dentro do contexto geral em que vivemos. Ele não teria poder de despertar uma ira quase que incontrolável que foi alimentando as interações nas redes sociais nos corações tão lindos, puros e sem nenhuma agressividade. Pode parecer trabalhoso isso, mas teremos que olhar para dentro e ver o quanto algumas sombras também nos habitam para poder trabalha-las melhor no nosso cotidiano individual e social. Com esse segundo turno, com o discurso mais moderado, podemos deixar de observar que aquele ódio todo não desapareceu, não era só estratégia de defesa de um estado democrático. Aquele ódio ainda está aí e o melhor que podemos fazer é trabalhar isso em nós.

Lembram que eu falei que iria falar de Harry Porter? Essa analogia serve para refletir sobre a projeção que eu vejo na direita e que falarei adiante. Assim que acabou o primeiro turno eu pensei: Como vencer de um Bolsonaro? Ele apareceu de maneira mais forte do que eu esperava. Não sei de onde veio essa ideia, talvez do movimento de não falar do nome dele. Pareceu que ele também era “aquele que não se pode nomear”. Eu comecei a pensar em Lord Voldemort e a história das horcruxes. Na saga, Voldemort era um vilão imortal porque partes da sua alma tinham sido inseridas em objetos, na cobra que sempre o seguia e no próprio Harry Potter. Não entendo muito da saga, tal como o anime, mas essa metáfora me veio na mente. O que eu entendo é que não seria possível derrotar Voldemort sem destruir as partes da alma do mesmo que estavam espalhadas em vários lugares. Dentro dessa metáfora, me veio algo que já tenho pensado muito. Não adianta combatermos algo enquanto movimento social e ao mesmo tempo sustentar esse mesmo algo na nossa esfera pessoal, individual. Não adianta eu querer combater o ódio na esfera macropolítica, quando ele está tão encrustado dentro do coração de cada pessoa. Sempre vão aparecer mais e mais pessoas que vão conseguir reunir essa energia em torno de uma ideia ou movimento. Como se vence Bolsonaro: “destruindo” a parte da energia dele que está dentro de cada um de nós. Coloco o destruir entre aspas mais para fazer alusão à série. Acho que o ódio tem que ser, primeiramente, reconhecido, acolhido, para poder, então ser transmutado em outras possibilidades de existência. É isso que tenho contribuído para alguns dos meus clientes no consultório e sinto que é isso tem que ser feito em um nível mais social e cultural. Não digo que todo mundo tem que fazer terapia, não é isso. Mas que cada pessoa possa, sinceramente, olhar para dentro, ver suas dores e traumas, e possam dar um outro direcionamento para essa energia.

Sei que é difícil para algumas pessoas reconhecerem o ódio dentro de si. Muitas pessoas vão dizer que isso deve estar em muita gente, “mas em mim, não”.  Se você já conseguiu chegar num estágio de consciência onde você não tem nada disso, acho que deve ser uma maravilha viver como você vive. Ainda não faço ideia de como seria viver assim. Se essa mensagem não se encaixa para você, tudo bem. Que você possa servir de inspiração através dos seus sentimentos, pensamentos, discursos e ações no mundo em prol de um mundo melhor. Porém, acho que você deve ser uma pessoa que não é tão fácil de achar por aí. Mas se você fizer parte da grande maioria que ainda tem muita coisa dentro de si, faça um favor para todxs nós, não deixe de reconhecer a sua parte, para não termos que ficar criando separação achando que somente o outro grupo é responsável pela maldade do mundo. Quanto mais você fizer a tarefa de casa de olhar e cuidar do seu “lixo interior”, mais fácil será para mantermos o mundo mais limpo.

2 – A projeção que vejo na direita diz respeito à corrupção. Vi muitas pessoas que dizem não se identificar com muitas coisas que Bolsonaro fala, mas que não podem mais suportar um partido tão corrupto quanto o PT. Eu tenho minhas dúvidas do quanto o PT é o mais corrupto dos partidos. Sei que existe corrupção em outros partidos, sei que existia corrupção antes do PT assumir o governo (Collor não era PTista), inclusive acredito que também deve ter tido corrupção durante a ditadura militar. Mas acho que muita coisa não foi investigada. Já escuto as pessoas falando que o fato de se ter corrupção em outros partidos não justifica ou diminui a gravidade do que o PT fez. Concordo plenamente. Só uso o mesmo raciocínio que usei acima quando falei da projeção do ódio. Talvez tenhamos todxs que observar o quanto a corrupção do nosso país não é uma característica de um ou outro grupo isoladamente. Nossa corrupção é institucionalizada e também endêmica. Todos sabem de como temos um “jeitinho brasileiro” para lidar com a nossa vida. A corrupção, de um jeito ou de outro, também está no nosso cotidiano, através de atos que parecem pequenos, mas que, somando-se, criam uma cultura que normalizou essa maneira de viver. São muitas as formas em que a corrupção se apresenta. Usando da mesma analogia, parece que não queremos reconhecer o quanto essa energia está dentro da gente e estamos procurando quem é o responsável por esse mal na nossa sociedade. E aí sobrou para o PT. Entendam que não estou dizendo que o PT não fez nada. Não é por acaso que ele está servindo dessa grande tela para projetarmos nossa corrupção. (não vou entrar aqui no mérito de uma reflexão que eu faço sobre qual a importância dos meios de comunicação, estruturas de poder, capital, etc. que poderia problematizar mais esse ponto. Mas o post já está enorme...rs). Tal como raciocinei quando falei do ódio de Bolsonaro. Ele, de fato, tem um discurso que incita a violência. Basta ver algumas postagens dos seus eleitores e também os relatos de pessoas que estão sendo agredidas ou intimidadas por estarem no lado oposto. Mas o problema está em querer concentrar o ódio de um país nele ou nos seus eleitores, como também concentrar no PT e nos seus eleitores toda a corrupção do país. A quantidade de fake News que rolou nesse primeiro turno é uma boa amostra disso que estou falando.

Do mesmo jeito que falei em relação ao ódio, também acho que é difícil admitirmos o quanto temos essa sombra da corrupção dentro de nós mesmos. Mas acho que é um esforço que vale a pena quando se leva em consideração o benefício que ele pode trazer ao pararmos de ter que ver somente no nosso “inimigo” a maldade da corrupção. A metáfora de Voldemort também cabe aqui

Acredito que tem ódio tanto na direita quanto na esquerda. Também acredito que temos corrupção na esquerda, quanto na direita. Estamos brigando como se estivéssemos totalmente distantes nessas trincheiras, quando, na verdade, poderíamos nos juntar para combater esses males que estão há mais de séculos tomando conta do nosso país. Não existe salvação mágica, simples e rápida para um contexto que foi se formando há muito tempo. Se eu abro mão do pensamento projetivo e simplista, todos os problemas do país começaram desde o momento de sua colonização e vêm se arrastando de lá até aqui.
Estou me sentindo como se ninguém fosse aceitar que tem essas coisas dentro de si e vai dizer: “Se você tem ódio e corrupção dentro de você, isso é um problema seu. Não julgue o mundo através dos seus próprios sentimentos. Pare de projetar em mim os sentimentos que só estão em você.” Talvez seja eu mesmo o violento, odioso e o corrupto. Reconheço isso em mim e tenho me esforçado ao máximo para reconhecer e transmutar no meu dia-a-dia. Ruim é quando a gente nem reconhece. Se ninguém se identifica com isso, sinto que teremos que ter momentos mais difíceis ainda para poder olhar para estas sombras. Estou torcendo para que já tenhamos chegado ao mais baixo necessário do fundo do poço para podermos nos reconhecer e começarmos a subir.

Diante de tudo isso, o que eu proponho: Não ficarei em cima do muro. Votei no primeiro turno em Ciro e votarei no segundo em Haddad porque acredito em termos espaço político e social para nos mobilizarmos e sinto que uma possível ditadura ou um governo mais autoritário pode não permitir isso. Um raciocínio parecido com o do ator Pedro Cardoso que postou um vídeo dizendo que votaria no PT para fazer oposição no dia seguinte. Essa fala tem tudo a ver com o que estou escrevendo sobre a projeção. Se o mal que existe na sociedade também começa dentro de mim, também é responsabilidade minha dar conta disso. Falei mais acima que cada um tem que olhar dentro de si, mas nossa atuação pode não parar somente na nossa esfera individual. Podemos limpar o lixo da nossa casa, mas podemos também nos organizar enquanto sociedade para ajudar a limpar o lixo lá fora. Nesse ponto me vem uma pergunta: Todas as pessoas que estão tão preocupadas com a corrupção nessas eleições, onde estavam durante todo o tempo em que tantos escândalos têm aparecido? Será que enquanto pessoas e sociedade, temos uma prática de participar de espaços que servem de fiscalização, de mobilização, de construção de práticas mais transparentes, mais idôneas e que garantam que os nossos políticos não vão poder fazer o que quiserem com o nosso país? Quando eu morava em prédios, eu não participava nem de reunião de condomínio. Mas, já que estamos correndo o risco de colocar o país em uma situação tão perigosa por não suportar mais a corrupção, que tal mantermos a democracia, mas não deixarmos o combate à corrupção deixar de ser uma pauta de extrema prioridade? No entanto, pela experiência que tivemos com a ditadura, sabemos que não dá para se mobilizar e cobrar de um governo autoritário, porque não se pode ter uma força contrária. A divergência se reprime com violência. Então temos que garantir um estado democrático. Eu gostaria muito que a única possibilidade de isso acontecer não fosse votando no PT, mas, nesse momento, é. 

Então vou votar nessa direção.

Vamos nos organizar. Parte das coisas que eu acredito hoje em dia é que temos muito mais força do que acreditamos ou dizem para gente. Se cada pessoa se reconhecer nesse lugar de fazer algo, não precisamos ficar tão imobilizados enquanto os governantes fazer o que querem em seu próprio benefício. Mas, para que este poder possa ser reconhecido e atuado socialmente, temos que ter liberdade para isso. Para começarmos a mudar esse quadro, sem ser através de uma postura que possa causar ainda mais estragos na nossa sociedade, talvez a solução não possa ser feita apenas por um político, um partido ou um grupo. Enquanto estamos nos dividindo, estamos sendo facilmente conquistados. Essa receita é antiga. Mas podemos nos unir e pensarmos em criar algo diferente.


Vamos todxs nos implicar na “solução” desse problema?

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A infeliz vitória de Bolsonaro



Semana passada acordei assustado. Tive um sonho em que Bolsonaro era eleito no primeiro turno com uma vantagem significativa e confortável para o mesmo que aparecia na televisão com um ar de “eu já sabia”. O estranho foi que, no sonho, tinha um quê de resignação triste na minha resposta a esse resultado. Porém, ao acordar, eu estava sobressaltado e sem acreditar. Até que me dei conta que foi “apenas um sonho”. Ao relatar o sonho para pessoas próximas, algumas comentaram que, apesar do possível absurdo que seria isso, achava que não era tão irreal assim essa possibilidade.

Tenho ficado mais afastado de alguns debates mais calorosos em relação à presidência. Inclusive participo das redes sociais e acompanho em silêncio e fico tecendo algumas considerações comigo mesmo e com poucos amigos mais próximos.

Observando as ações e reações de todos os lados de uma boa parte das pessoas que está mais envolvido e empenhado nessa seara política atual, me vejo diante de um campo de batalha onde tem muita gente batendo e apanhando, e encontrando justificativas para bater mais, xingar mais, desmerecer mais, humilhar mais, odiar mais, etc.

Volto a pensar no meu sonho. Nem de longe acredito que ele é premonitório, que estou prevendo o futuro. Tenho muito mais uma perspectiva de que os meus sonhos revelam mais de mim mesmo, nos meus processos de autoconhecimento, do que qualquer outra coisa. No entanto, ainda assim, fiquei meditando um pouco sobre ele e lembrei de outro texto que já escrevi nesse blog:

Eu não sei se ainda é difícil para as pessoas que vão votar em Bolsonaro perceber que muitas das falas dele trazem uma energia de ódio. Falo em energia porque, quando falamos de discurso, parece que ficamos apegados ao conteúdo do que foi falado somente e não vemos que tem um tom, uma postura, vários gestos, julgamentos, preconceitos, juízo de valor, etc. Um conjunto de fatores que podem identificar o que aquelas palavras estão veiculando para toda a sociedade. Não acho que foi ele que inventou essa postura (como também sei que a corrupção no nosso país não se iniciou com o PT, ou só foi praticada por este partido). Acho que ele só está sendo um representante muito enfático de uma corrente de ódio que já estava na sociedade. Em alguns nichos mais declaradamente e, talvez na maior parte das pessoas, de maneira mais velada, menos explícita e mais encoberta. Acho que essa árvore do ódio já estava plantada no terreno do nosso país há muito tempo. Talvez valha a pena refletir, a partir de um ponto de vista histórico e sistêmico, como foi a nossa construção enquanto nação, o quanto as injustiças, as violências, as humilhações, exterminações, exclusões fazem parte da nossa herança sociocultural. Acho que todas as pessoas têm uma sombra e que, nos lugares mais escondidos dentro de nós, temos coisas que não gostamos de assumir para nós mesmos e, muito menos, para as demais pessoas. É muito provável que, devido ao fato de termos esse histórico, carreguemos muitas marcas em nossas vidas. Talvez todxs tragam muito sofrimentos dentro de si e isso também nos constitua enquanto sujeitos nesse tempo atual. Cada vez mais acredito que o que vivemos enquanto sociedade está vinculado a este passado coletivo, como também às biografias de cada um individualmente. Acho que é necessário que olhemos para dentro da gente. Em outro momento escrevo a minha perspectiva sobre a relação entre as nossas vidas, nossas dores e traumas, nossas lutas sociais e como isso pode afetar na maneira em como nos posicionamos nessas lutas. Não caberia aqui...rs

Voltando mais para o tema principal. Como falei no texto citado anteriormente, me preocupa como este clima de ódio e intolerância está espalhado em todos os lugares atualmente, incluindo os corações e discursos das pessoas que se sentem “lutando” contra o “fascista, opressor, machista”, etc. Se eu vejo o Bolsonaro como representante dessa energia, me parece que quando as pessoas que se identificam com a esquerda - ou com os valores historicamente defendidos por esta - se contagiam por este clima de ódio, sinto que ele se fortalece. Sempre achei que o maior perigo que corremos atualmente não é pela pessoa, ou figura pública do Bolsonaro, e sim pelas ideias e o clima de ódio que elas propagam. No entanto, me parece que uma boa parte das pessoas focaram na figura dele e se esqueceram que a intolerância que ele representa é que pode realmente prejudicar. Acho que, quando o foco foi para ele, muitas pessoas deram vazão a toda raiva e intolerância que também estavam contidas nelas com a justificativa de combater o mal, o fascismo e a intolerância.

Não sei se eu sou muito romântico, utópico, idealista ou alienado. Mas tenho, de verdade, uma dificuldade de entender como iremos combater o ódio e espalhar o amor, sendo agentes de toda essa onda de ódio que está sendo disseminada por todos os cantos. Tenho dificuldade de entender que, se chega para mim uma pessoa cheia de ódio, é eu respondendo com mais ódio ainda que irei melhorar essa situação. Ao meu ver, combater ódio com ódio gera mais ódio (essa frase me pareceu meio redundante... mas acho que não percebemos isso) E se o Bolsonaro está representando esse movimento, sinto que, independente do resultado das urnas no primeiro e segundo turno, ele já venceu. Conseguiu provocar em todo mundo, seja quem o apoia, ou quem está lutando contra ele, um clima de separação, desamor, desumanidade e exclusão do diferente. O pior que esta separação não se direciona somente a ele, mas se estende aos eleitores dele também. Não acho que todxs os eleitores de Bolsonaro se encaixe no perfil que muitas pessoas estão rotulando e generalizando. A sociedade é tão complexa que sinto que é muito raso tentar compreender todo o jogo de forças que está atuando nessas eleições de modo mais simplista.

Lógico que já escuto o que muitas pessoas já colocaram que não se pode tolerar o intolerante, deixar com que os discursos de ódio sejam propagados em nome da liberdade de falar. Não estou falando disso. Não acho que não temos que nos posicionar a favor do que acreditamos. A minha dúvida é se só podemos fazer isso sendo movido pelos mesmos sentimentos que estamos tentando combater. Ao meu ver, se existe uma árvore de ódio dentro da nossa sociedade, mesmo que parecendo que não, quem está lutando contra o “Coiso” (juntamente com tantos apelidos que também são desumanizadores) usando das mesmas “armas” que ele costuma usar – mesmo que o objetivo seja para não deixar os opressores passarem – estão regando e adubando esta árvore com a sua energia de guerra.

Deve existir alguma forma de se posicionar e se unir para construir uma sociedade mais justa e igualitária para todxs sem ser movido por esta energia. O brasileiro é visto como um povo tão criativo, mas parece que estamos mais propensos a dar vazão a estes sentimentos que, mesmo tendo componentes e justificativas diferentes, acabam reforçando este campo de batalha que está posto. Parece que estamos meio cegos de medo e de raiva. 

Vejo que mudar uma sociedade não passa somente pela escolha de candidatos aos cargos públicos. Essa parte é muito importante e acho que temos que debater e refletir muito sobre isso. Porém, tenho pensado que também é um ato de resistência política, com o objetivo de mudança, não ceder a esta tentação tão tentadora de pagar com a mesma moeda todas as violências sentidas na pele. A vida vai continuar depois das eleições. Acho que até poderemos evitar que o Bolsonaro se eleja presidente – seja pela grande mobilização das mulheres, pela tentativa dos votos estratégicos, pela campanha nas redes sociais, etc. – mas, se o saldo desse combate for o aumento de ódio de todos os lados, me parece que é uma questão de tempo para que tenhamos que estar nos enfrentando novamente, seja com ele mesmo ou com tantos outros que sairão fortalecidos nesse processo de fazer do ódio o motor da nossa vida social.

Talvez seja necessário uma reflexão muito profunda de todas as pessoas – incluindo as que se dizem mais humanizadoras e tolerantes: para se reconhecer o quanto estamos alimentando esse ódio entre nós mesmos; para que não tenhamos que escrever capítulos ainda mais obscuros na nossa história; para que não tenhamos que descer ainda mais profundo nesse poço,  para que possamos sair desse maniqueísmo raivoso de ver somente no outro a sombra do mal, violência e da intolerância que também nos habita.

Tem um trecho de uma música que eu gosto muito e que a Clara Nunes canta:
"Só quem mexe na terra
  Sabe o cheiro do chão
  Só quem faz uma Guerra
  Sabe o gosto da Razão"

Gosto muito de acreditar que já temos exemplos e conhecimento suficientes para não termos que criar uma guerra maior do que a que já está posta para podermos recordar e valorizar a importância da razão para a manutenção da sociedade.

Torço sinceramente que Bolsonaro não se eleja. Acho que isso seria uma vitória temporária. Votarei intencionando isso. Contudo, sinto que, se cada um não fizer a sua parte dentro de si, essa eleição não vai ser o mais importante no rumo que daremos aos próximos passos da nossa nação. Que possamos ter discernimento e sabedoria para lidar com tudo isso.

PS: Sei que tem muitas pessoas que acham que o clima de ódio atual foi gerado pelo PT e pela esquerda. Isso daria uma boa discussão, discordo desse ponto de vista, mas quis focar no candidato à Presidência por ele ser um representante maior de um movimento.