sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Dividir para ser conquistado: a projeção da maldade nos outros


"Quando vires um homem bom, procura imita-lo; quando vires um homem mau, examina-te a ti mesmo." Confúcio

Primeiro de tudo, pausa para respirar...rsrs

Agora senta que lá vem textão...

Muito se tem falado dos tempos sombrios que já estamos vivendo e que “os ventos” anunciam que ainda pode ficar pior.

Tenho tanta coisa pra falar, mas vou tentar organizar por partes.

Primeiramente queria deixar claro que vejo na possibilidade de Bolsonaro ser eleito presidente uma grande ameaça à democracia e vários valores fundamentais à manutenção do que chamamos de sociedade. Logo, o meu posicionamento será o de fazer o possível para que não precisemos chegar nesse “lugar” para aprendermos sobre o que quero apontar aqui. Meu voto no primeiro turno não foi no PT, por inúmeras razões que não vou citar agora. No entanto terá que ser no segundo turno por conta dessa ameaça que sinto que está rondando a nação. Não será um voto sem críticas, achando que era o melhor desde o início, tanto que não votei no primeiro turno. Será um voto a favor da possibilidade de se manter acesa a chama da liberdade, da mobilização, do debate, da crítica, do questionar o próprio governo – incluindo a prisão de políticos dos partidos onde seja constatado que crimes foram cometidos, etc. Muitas pessoas estão achando que ter esse receio é ser muito alarmista, que não é tão grave assim, que a democracia não está ameaçada. Pode até ser e quero muito acreditar que não chegamos, enquanto país, nesse nível de irracionalidade. Porém, repetir um episódio tão lamentável, perigoso e destrutivo é tão grave que eu prefiro não correr esse risco. O preço a ser pago pode ser muito alto.

Segundamente, no post anterior, estive falando sobre a energia de ódio que eu sentia e ainda sinto que Bolsonaro representa tão bem e o quanto eu achava que todxs estavam se contagiando, inclusive aqueles que estão lutando para não deixar essa energia se instaurar por completo no poder. Passado o primeiro turno, com os seus resultados e com as primeiras reações de muitos que vejo nas minhas redes sociais, sinto uma tristeza profunda e uma grande preocupação. Diante do resultado expressivo de Bolsonaro, inicia-se uma mobilização, por vezes de uma forma desesperada, para se obter votos para ambos os lados na corrida para se fechar o resultado no segundo turno. A polarização, que já não estava pequena, assume formas bem concretas e lidar com isso não é simples. Nessa busca, podemos não ver o quanto estamos, inconscientemente, alimentando o lado oposto.

Pausa para parecer que vou brincar com a cara de quem está lendo esse post, mas é sério.

Brinquei com algumas pessoas próximas que eu iria começar essa nova postagem dizendo que falaria sério sobre política e para isso traria, como pano de fundo, duas analogias muito acadêmicas (rsrsrsrs): o anime Dragoon Ball Z e a saga de Harry Potter.

Sobre Dragon Ball Z, eu peço a ajuda de pessoas que tenham assistido, de fato, o anime para me corrigir se eu estiver errado, pois eu não me lembro bem. A analogia que ficou para mim é o mais importante e não parou de vir à minha cabeça durante a ascensão do Bolsonaro nos últimos tempos. Tem um vilão no anime que se chama Majin Boo e, caso eu não esteja muito enganado, ele tinha uma característica interessante: conseguia absorver todo o poder de um golpe que era desferido contra ele e, consequentemente, saía mais fortalecido depois dos ataques. Quanto mais eu via as pessoas atacando Bolsonaro com o mesmo tipo de energia que ele representa, eu pensava: em algum nível estamos dizendo que a postura de ódio dele serve para fazer política. Vi muitos eleitores pró-Bolsonaro mostrando de maneira muito óbvia que era muito contraditório algumas pessoas ligadas à esquerda serem contra o radicalismo do candidato deles usando de uma postura tão odiosa quanto as coisas que ele falava. Sentia que no final rolava um: qual a diferença da lavagem cerebral e intolerância da direita para a esquerda. Inclusive vi algumas pessoas que tentavam se posicionar num lugar menos polarizado querendo dialogar com algumas pessoas da esquerda e eram taxados com várias generalizações, gerando uma mensagem implícita ou explícita de que também não era fácil debater com eles a partir de uma visão diferente. Geramos em muitos momentos um combate de “cegos e surdos” onde as pessoas deixaram de se ver, de se escutar enquanto pessoas. Movidos pela raiva, pelo medo, pelo desespero, começamos a ver inimigos por todos os lados  e, no final das contas, a energia de ódio só aumentou, alimentando diretamente quem mais está representando ela. Tentar lutar contra o ódio de quem eu considero fascista, odiando, estou dando a minha energia para ele, fortalecendo-o.

Mas aí entra uma dinâmica que tem a ver com o título da postagem: a projeção da maldade. Tenho a impressão, e algumas teorias psicológicas podem explicar isso de maneira mais profunda, de que não queremos reconhecer em nós o quanto temos aspectos dos quais não nos orgulhamos. Temos dificuldade em perceber que algumas coisas que criticamos fervorosamente no “outro” também estão dentro de nós, de maneira até mais escondida – podendo ser até mais perigoso, justamente por não termos consciência disso e podermos atuar no mundo movidos por estas coisas. Na vontade de sermos pessoas boas, não reconhecemos as nossas sombras e só conseguimos ver estes aspectos quando outras pessoas os apresentam e – a partir delas, nos “outros” – fica muito claro o quanto estas coisas são ruins. Segundo as teorias, todas aquelas coisas que negarmos estar em nós, teremos a necessidade de enfatizar no outro, como uma tentativa de não ver que elas também estão em nós.

Vejo isso todo dia no meu consultório atendendo às pessoas. Porém, sinto que esse movimento não acontece somente numa esfera individual. Acredito que essa dinâmica também permeia as relações sociais, entre os grupos diferentes. Partindo dessa percepção, vejo duas grandes projeções (devem ter várias outras) nesse momento político tão polarizado nos discursos da esquerda e da direita:

1 – Na esquerda vejo uma projeção em relação ao discurso de ódio. Falei isso nas minhas duas últimas postagens e continuo enfatizando a mesma coisa nesse momento. Mesmo que, nesse segundo turno, eu veja algumas mudanças nas falas das pessoas que estavam batendo tanto nos “fascistas” durante o primeiro turno.  Acredito piamente que as pessoas podiam estar querendo, de fato, evitar o que elas acham que seria uma tragédia ao permitir que Bolsonaro se eleja. Porém, junto com essa intenção, muito ódio que estava guardado “dentro” das pessoas veio à tona com esses embates. Tanto ódio não foi gerado “somente” porque o candidato falou coisas absurdas dentro do contexto geral em que vivemos. Ele não teria poder de despertar uma ira quase que incontrolável que foi alimentando as interações nas redes sociais nos corações tão lindos, puros e sem nenhuma agressividade. Pode parecer trabalhoso isso, mas teremos que olhar para dentro e ver o quanto algumas sombras também nos habitam para poder trabalha-las melhor no nosso cotidiano individual e social. Com esse segundo turno, com o discurso mais moderado, podemos deixar de observar que aquele ódio todo não desapareceu, não era só estratégia de defesa de um estado democrático. Aquele ódio ainda está aí e o melhor que podemos fazer é trabalhar isso em nós.

Lembram que eu falei que iria falar de Harry Porter? Essa analogia serve para refletir sobre a projeção que eu vejo na direita e que falarei adiante. Assim que acabou o primeiro turno eu pensei: Como vencer de um Bolsonaro? Ele apareceu de maneira mais forte do que eu esperava. Não sei de onde veio essa ideia, talvez do movimento de não falar do nome dele. Pareceu que ele também era “aquele que não se pode nomear”. Eu comecei a pensar em Lord Voldemort e a história das horcruxes. Na saga, Voldemort era um vilão imortal porque partes da sua alma tinham sido inseridas em objetos, na cobra que sempre o seguia e no próprio Harry Potter. Não entendo muito da saga, tal como o anime, mas essa metáfora me veio na mente. O que eu entendo é que não seria possível derrotar Voldemort sem destruir as partes da alma do mesmo que estavam espalhadas em vários lugares. Dentro dessa metáfora, me veio algo que já tenho pensado muito. Não adianta combatermos algo enquanto movimento social e ao mesmo tempo sustentar esse mesmo algo na nossa esfera pessoal, individual. Não adianta eu querer combater o ódio na esfera macropolítica, quando ele está tão encrustado dentro do coração de cada pessoa. Sempre vão aparecer mais e mais pessoas que vão conseguir reunir essa energia em torno de uma ideia ou movimento. Como se vence Bolsonaro: “destruindo” a parte da energia dele que está dentro de cada um de nós. Coloco o destruir entre aspas mais para fazer alusão à série. Acho que o ódio tem que ser, primeiramente, reconhecido, acolhido, para poder, então ser transmutado em outras possibilidades de existência. É isso que tenho contribuído para alguns dos meus clientes no consultório e sinto que é isso tem que ser feito em um nível mais social e cultural. Não digo que todo mundo tem que fazer terapia, não é isso. Mas que cada pessoa possa, sinceramente, olhar para dentro, ver suas dores e traumas, e possam dar um outro direcionamento para essa energia.

Sei que é difícil para algumas pessoas reconhecerem o ódio dentro de si. Muitas pessoas vão dizer que isso deve estar em muita gente, “mas em mim, não”.  Se você já conseguiu chegar num estágio de consciência onde você não tem nada disso, acho que deve ser uma maravilha viver como você vive. Ainda não faço ideia de como seria viver assim. Se essa mensagem não se encaixa para você, tudo bem. Que você possa servir de inspiração através dos seus sentimentos, pensamentos, discursos e ações no mundo em prol de um mundo melhor. Porém, acho que você deve ser uma pessoa que não é tão fácil de achar por aí. Mas se você fizer parte da grande maioria que ainda tem muita coisa dentro de si, faça um favor para todxs nós, não deixe de reconhecer a sua parte, para não termos que ficar criando separação achando que somente o outro grupo é responsável pela maldade do mundo. Quanto mais você fizer a tarefa de casa de olhar e cuidar do seu “lixo interior”, mais fácil será para mantermos o mundo mais limpo.

2 – A projeção que vejo na direita diz respeito à corrupção. Vi muitas pessoas que dizem não se identificar com muitas coisas que Bolsonaro fala, mas que não podem mais suportar um partido tão corrupto quanto o PT. Eu tenho minhas dúvidas do quanto o PT é o mais corrupto dos partidos. Sei que existe corrupção em outros partidos, sei que existia corrupção antes do PT assumir o governo (Collor não era PTista), inclusive acredito que também deve ter tido corrupção durante a ditadura militar. Mas acho que muita coisa não foi investigada. Já escuto as pessoas falando que o fato de se ter corrupção em outros partidos não justifica ou diminui a gravidade do que o PT fez. Concordo plenamente. Só uso o mesmo raciocínio que usei acima quando falei da projeção do ódio. Talvez tenhamos todxs que observar o quanto a corrupção do nosso país não é uma característica de um ou outro grupo isoladamente. Nossa corrupção é institucionalizada e também endêmica. Todos sabem de como temos um “jeitinho brasileiro” para lidar com a nossa vida. A corrupção, de um jeito ou de outro, também está no nosso cotidiano, através de atos que parecem pequenos, mas que, somando-se, criam uma cultura que normalizou essa maneira de viver. São muitas as formas em que a corrupção se apresenta. Usando da mesma analogia, parece que não queremos reconhecer o quanto essa energia está dentro da gente e estamos procurando quem é o responsável por esse mal na nossa sociedade. E aí sobrou para o PT. Entendam que não estou dizendo que o PT não fez nada. Não é por acaso que ele está servindo dessa grande tela para projetarmos nossa corrupção. (não vou entrar aqui no mérito de uma reflexão que eu faço sobre qual a importância dos meios de comunicação, estruturas de poder, capital, etc. que poderia problematizar mais esse ponto. Mas o post já está enorme...rs). Tal como raciocinei quando falei do ódio de Bolsonaro. Ele, de fato, tem um discurso que incita a violência. Basta ver algumas postagens dos seus eleitores e também os relatos de pessoas que estão sendo agredidas ou intimidadas por estarem no lado oposto. Mas o problema está em querer concentrar o ódio de um país nele ou nos seus eleitores, como também concentrar no PT e nos seus eleitores toda a corrupção do país. A quantidade de fake News que rolou nesse primeiro turno é uma boa amostra disso que estou falando.

Do mesmo jeito que falei em relação ao ódio, também acho que é difícil admitirmos o quanto temos essa sombra da corrupção dentro de nós mesmos. Mas acho que é um esforço que vale a pena quando se leva em consideração o benefício que ele pode trazer ao pararmos de ter que ver somente no nosso “inimigo” a maldade da corrupção. A metáfora de Voldemort também cabe aqui

Acredito que tem ódio tanto na direita quanto na esquerda. Também acredito que temos corrupção na esquerda, quanto na direita. Estamos brigando como se estivéssemos totalmente distantes nessas trincheiras, quando, na verdade, poderíamos nos juntar para combater esses males que estão há mais de séculos tomando conta do nosso país. Não existe salvação mágica, simples e rápida para um contexto que foi se formando há muito tempo. Se eu abro mão do pensamento projetivo e simplista, todos os problemas do país começaram desde o momento de sua colonização e vêm se arrastando de lá até aqui.
Estou me sentindo como se ninguém fosse aceitar que tem essas coisas dentro de si e vai dizer: “Se você tem ódio e corrupção dentro de você, isso é um problema seu. Não julgue o mundo através dos seus próprios sentimentos. Pare de projetar em mim os sentimentos que só estão em você.” Talvez seja eu mesmo o violento, odioso e o corrupto. Reconheço isso em mim e tenho me esforçado ao máximo para reconhecer e transmutar no meu dia-a-dia. Ruim é quando a gente nem reconhece. Se ninguém se identifica com isso, sinto que teremos que ter momentos mais difíceis ainda para poder olhar para estas sombras. Estou torcendo para que já tenhamos chegado ao mais baixo necessário do fundo do poço para podermos nos reconhecer e começarmos a subir.

Diante de tudo isso, o que eu proponho: Não ficarei em cima do muro. Votei no primeiro turno em Ciro e votarei no segundo em Haddad porque acredito em termos espaço político e social para nos mobilizarmos e sinto que uma possível ditadura ou um governo mais autoritário pode não permitir isso. Um raciocínio parecido com o do ator Pedro Cardoso que postou um vídeo dizendo que votaria no PT para fazer oposição no dia seguinte. Essa fala tem tudo a ver com o que estou escrevendo sobre a projeção. Se o mal que existe na sociedade também começa dentro de mim, também é responsabilidade minha dar conta disso. Falei mais acima que cada um tem que olhar dentro de si, mas nossa atuação pode não parar somente na nossa esfera individual. Podemos limpar o lixo da nossa casa, mas podemos também nos organizar enquanto sociedade para ajudar a limpar o lixo lá fora. Nesse ponto me vem uma pergunta: Todas as pessoas que estão tão preocupadas com a corrupção nessas eleições, onde estavam durante todo o tempo em que tantos escândalos têm aparecido? Será que enquanto pessoas e sociedade, temos uma prática de participar de espaços que servem de fiscalização, de mobilização, de construção de práticas mais transparentes, mais idôneas e que garantam que os nossos políticos não vão poder fazer o que quiserem com o nosso país? Quando eu morava em prédios, eu não participava nem de reunião de condomínio. Mas, já que estamos correndo o risco de colocar o país em uma situação tão perigosa por não suportar mais a corrupção, que tal mantermos a democracia, mas não deixarmos o combate à corrupção deixar de ser uma pauta de extrema prioridade? No entanto, pela experiência que tivemos com a ditadura, sabemos que não dá para se mobilizar e cobrar de um governo autoritário, porque não se pode ter uma força contrária. A divergência se reprime com violência. Então temos que garantir um estado democrático. Eu gostaria muito que a única possibilidade de isso acontecer não fosse votando no PT, mas, nesse momento, é. 

Então vou votar nessa direção.

Vamos nos organizar. Parte das coisas que eu acredito hoje em dia é que temos muito mais força do que acreditamos ou dizem para gente. Se cada pessoa se reconhecer nesse lugar de fazer algo, não precisamos ficar tão imobilizados enquanto os governantes fazer o que querem em seu próprio benefício. Mas, para que este poder possa ser reconhecido e atuado socialmente, temos que ter liberdade para isso. Para começarmos a mudar esse quadro, sem ser através de uma postura que possa causar ainda mais estragos na nossa sociedade, talvez a solução não possa ser feita apenas por um político, um partido ou um grupo. Enquanto estamos nos dividindo, estamos sendo facilmente conquistados. Essa receita é antiga. Mas podemos nos unir e pensarmos em criar algo diferente.


Vamos todxs nos implicar na “solução” desse problema?

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