terça-feira, 6 de outubro de 2020

Minha vida sem sol


Hoje eu acordei com dor de garganta.

Assim que a percebi tive um sentimento estranho. Uma mistura de surpresa com lembranças antigas, pois é muito raro eu ter uma crise hoje em dia, mas a amigdalite já foi uma companheira muito mais próxima, cotidiana, debilitante e incômoda durante a infância e boa parte da adolescência.

Na adolescência, já fazendo psicoterapia, fui aos poucos entendendo o fundo emocional que estava por trás daquelas crises e, junto com outras práticas integrativas, consegui encontrar um lugar menos sofrido e espaçado entre as crises.

Mas por que estou falando das minhas dores de garganta? Porque elas me conectam diretamente com uma parte da minha vida onde eu era totalmente regido pelas minhas dores. Minha vida sem sol.

Desde muito cedo.

Talvez as pessoas que me veem hoje em dia e não são tão próximas de mim, não tenham como imaginar caminhos por onde eu passei. Talvez as pessoas que me conhecem desde a infância ou adolescência, podem lembrar de vários comportamentos estranhos, agressivos, autodestrutivos que eu tinha. Mas é muito provável que também não façam a mínima ideia de tantas coisas que estavam por trás daqueles comportamentos. O fato é que, desde muito cedo, antes dos meus 10 anos de idade, eu já me sentia muito ruim comigo mesmo, com muitas angústias, muito sozinho e com vontade de não mais existir mais.

Um ponto importante, e aqui eu identifico uma virada na minha vida, foi iniciar a psicoterapia quando eu tinha 13 anos. Encontrar um espaço de fala foi muito importante para colocar para fora tantas dores que eu carregava e não me sentir mais tão isolado.Não foi uma “solução” mágica. Durante anos tive muitos momentos onde as coisas pareciam não ter sentido algum. Mas, gradativamente essa densidade  foi suavizando e, cada novo passo fortalecia a confiança no processo de me encontrar comigo mesmo e fazer dessa vida algo significativo para mim mesmo.

Porém, recentemente, recebi um convite para olhar novamente para o meu passado e quando o aceitei, minha garganta sinalizou novamente. A surpresa vem porque tenho me sentido muito bem comigo mesmo atualmente e eu sei o que mobiliza minhas dores de garganta. Apesar de toda a felicidade e o sentido mais pleno que tenho dado para o meu momento presente, sou obrigado a reconhecer que existe uma parte da minha vida em que eu não me sentia assim.

Minha vida sem sol.

Para mim, o pior de uma vida sem sol não foi ter uma noite ruim ou uma madrugada insone. O que beirava o insuportável era não saber quando ou se, o dia voltaria a amanhecer. Era se sentir apartado, excluído de um ciclo natural da vida onde as coisas se renovavam, para sentir quase que de maneira concreta e palpável que tudo tinha parado, estagnado, que nada crescia, desenvolvia, caminhava. Não ver um nascer ou pôr do sol. Não escutar os primeiros cantos dos pássaros, não ver as flores desabrochando.

Era como se o filme da minha vida tivesse pausado em uma cena muito ruim dele e eu não soubesse como fazer para apertar o botão do play novamente. E ainda nem acreditava que as próximas cenas poderiam ter algo de feliz. Essa convivência diária com dores profundas que atormentavam e me isolavam cada vez mais.

Viver os dias naquele tempo era algo bem difícil, desgastante. Já que falei de insônia: era como se eu não conseguisse dormir toda noite e ainda tentasse “aproveitar” dessas horas para fazer algo de bom para mim. Mas me faltavam forças e energias. Não dava simplesmente para eu ficar bem porque, seja lá o que eu fizesse, não sentia que estava fazendo porque eu queria, mas sim porque não tinha escolha de descansar e me renovar.

Me sentia isolado e infeliz quando via as pessoas acordarem para o seu dia parecendo estar felizes (hoje eu sei que muitas também não estavam e não estão) e eu parecia ser um pobre diabo, amaldiçoado, que não via graça em nada.

Sempre tive contato com realidades sociais difíceis e pensava que eu devia ter algo de muito errado mesmo por saber que tinham pessoas que passavam por situações “muito piores que a minha” (hoje entendo melhor que sofrimento não se mede) e ainda assim tocavam a sua vida e eu ali me sentindo no mesmo lugar.

Tudo parecia estar errado em mim.

Quando eu tentava ficar mais feliz, vinha sempre como algo forçado, muitas vezes uma compensação exagerada para encobrir a dor. Era como se eu precisasse me manter bêbado por não conseguir lidar com a ressaca. Mas isso era muito cansativo porque a ressaca parecia ser o meu estado natural de ser. Então, haja fugas para não me conectar com aquela eterna sensação ruim com a minha própria vida.

Ao olhar para tudo isso daqui, de onde me encontro atualmente, gosto cada vez mais da frase:

"Se houve um dia na vida em que a liberdade parecia um lindo sonho, virá também o dia em que toda a experiência sofrida no passado parecerá um mero pesadelo." (Viktor Frankl).

Daqui de onde me encontro, me sinto feliz. Talvez de um jeito que eu não tinha imaginado nesse momento de uma vida sem sol. Não é uma felicidade de comercial de margarina, uma imagem cristalizada e morta sobre o que é ser feliz. Continuo com muitos desafios para serem trabalhados, mas não mais a partir daquele lugar tão desesperador e sem sentido.

Por fim, queria dizer para você, que talvez se encontrou em algumas das coisas que falei sobre viver uma vida sem sol, que existe sim a possibilidade desse sol voltar a brilhar. Que por mais insuperável que possam parecer os tempos difíceis, existe a possibilidade desse reencontro consigo mesmo e com a vida. Pode não ser fácil, pode não ser suave, mas esse processo pode conter vários tesouros para a construção de uma vida mais feliz e plena de sentido.

Talvez você precise de companhia ao longo dessa jornada, para ajudar nessa travessia, para encontrar uma saída dentro desse labirinto. Então, pensa com carinho e cuidado em procurar ajuda profissional. Pede indicações para você se encontrar com alguém que você possa confiar mais e tenta! Tenta não ficar refém do sentimento de que não tem nada para ser feito. Você não precisa estar sozinho nessa!