Gravar o último podcast não foi fácil!
Na sexta feira passada, dia 15.01 gravamos mais um episódio do podcast do projeto Revelando-Ser. Ele foi publicado no dia 21.02.21
Para quem não conhece, o objetivo desse projeto é desconstruir o muro do silêncio que existe em volta das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência.
Inspirados pela campanha do Janeiro Branco, nos planejamos para falar de aspectos que dizem respeito ao abuso sexual e que influenciam diretamente na saúde mental das pessoas que passam por essa situação.
Porém, naquela sexta eu acordo vendo as várias notícias da situação que estava acontecendo em Manaus. Saber que pessoas estavam morrendo por falta de oxigênio depois de tanto tempo de pandemia, foi muito difícil. Um sentimento ruim gritou dentro de mim. Na verdade, o que ficou pesando em mim não foi somente esse evento, mas sim, tudo que vem acontecendo nos últimos anos no nosso país e que vem se intensificado ainda mais durante o desgoverno atual e a pandemia. Eu comentei com algumas pessoas próximas que a pior e mais destrutiva variação do coronavírus era o COVID-17 (fazendo alusão ao antigo partido do atual presidente. É um desgoverno tão grande que nem partido ele tem. É tão bizarro que fica até difícil fazer a piada).
Foi difícil para mim pensar em falar sobre as questões referentes ao abuso sexual diante de tanto absurdo que tem acontecido atualmente na nossa sociedade, no nosso país, na nossa política.
Lembrei de um vídeo da Rita Von Hunty sobre o setembro amarelo (LINK), onde ela inicia o vídeo dizendo porque ela estava triste e todos os motivos tinham de pano de fundo nossa crise política, social, ambiental, financeira, etc. Ao ser recomendada cuidar da saúde mental dela, ela manda a pessoa ir à merda...rs. Ela fala posteriormente, entre outras coisas, o quanto as discussões acerca da saúde mental fazem parte de um ethos neoliberal que tende a colocar todo o peso do sofrimento que as pessoas sentem como uma responsabilidade do indivíduo sem problematizar o contexto social no qual este mesmo indivíduo está inserido.
A psicologia parece ainda ter que fazer um esforço grande para se libertar desse ranço individualista, que parece falar das pessoas de um ponto de vista particularizado, como se as pessoas fossem encapsuladas numa bolha fechada e que não estivessem construindo suas subjetividades a partir de uma inserção e vivência dentro de contexto histórico, grupal, social e político. Parece que ainda estamos muito querendo saber o que aconteceu na biografia de cada pessoa, como foi a relação com o passado, com o pai e a mãe, para poder avaliar os impactos que isso vai ter na saúde mental de cada um.
Não é que essas coisas deixaram de ser importantes. O tema do abuso sexual não deixou de ser muito importante. Mas, para mim, foi muito difícil falar sobre saúde mental no podcast por que naquele dia, especificamente, eu estava sentindo minha saúde mental no limite, totalmente afetada por questões que extrapolam minha individualidade, a minha biografia, o “meu” cuidado com a “minha” saúde mental.
Como falar em saúde mental atualmente sem arregaçar o que está acontecendo politicamente no nosso país? É importante que cada pessoa cuide de si para fazer o melhor para o outro. Tá bom. Concordo. Mas dentro de um contexto de tantas mortes, tantas violências, tanto descaso, de tantas desigualdades, fica difícil sustentar esse discurso sem angústia.
Sem contar que, por conta dessas mesmas desigualdades, parece bem hipócrita, e porque não dizer perverso, sustentar um discurso de cuidados com a saúde mental quando sabemos que o acesso aos espaços de cuidados de saúde mental não está disponível igualmente para todas as pessoas independente de qual grupo social ela pertença.
E novamente vou frisar que minha angústia não era por mim individualmente. Neste momento posso reconhecer tantos lugares de privilégios que tive ao longo da minha biografia e que me permitiram estar numa situação muito menos vulnerável a tudo que está acontecendo no nosso país. Sou um homem hétero, cis, não sou negro, com um curso superior, trabalhando como autônomo sem sair de casa como psicoterapeuta. Falar de saúde mental dentro desse contexto é muito diferente do que tantas outras experiências que a maior parte das pessoas do nosso país vivem.
Então, se não tivermos cuidado os nossos discursos e movimentação nas redes sociais, mesmo que bem-intencionados, podem ser bem alienantes ao falaram de saúde mental de um lugar acrítico, atemporal, sem classe social, raça, gênero, etc.
Voltando ao tema do projeto: Não dá para discutir o abuso sexual, sem entender que essa violência acontece dentro de um contexto sócio-cultural machista, patriarcal, de impunidade para uma boa parte dos autores. Um movimento de culpabilização da vítima; um movimento retrógrado e conservador que não acha importante falar sobre educação sexual nas escolas; um discurso que diz que a família que tem que proteger as crianças, quando já tem escancarado que a maior parte das violências contra crianças e adolescentes acontecem dentro do seio familiar. Ao escutar uma pessoa abusada sexualmente eu escuto a dor dela enquanto indivíduo, mas escuto toda uma estrutura pesada e opressora que serve de propulsor dessas e de tantas outras violências.
Não vou dizer para vocês que não concordo com a campanha, tanto que gravamos o podcast mesmo assim. Mas redirecionamos o tema para falar de como é difícil ser um cuidador da saúde mental nesse momento quando estamos sendo atravessados por todas estas questões políticas e sociais. Acho que precisamos sim falar de saúde mental. Acho que o janeiro branco pode ajudar em muitos aspectos por ser um momento social onde se promove muitas reflexões. Só sinto que precisamos ter um fôlego maior para nos problematizar enquanto sociedade num sentido mais macro mesmo.
Precisamos fazer isso para entender que o adoecimento das pessoas acontece dentro de um tecido social do qual fazemos parte e que se não o problematizarmos estamos querendo fazer parte da solução por um lado, mas também somos bem parte do problema por outro.