segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Machismo em forma de "romance"

 



#voceescutaoquecanta?

Começo atirando no próprio pé! Estarei trazendo muitos sambas porque é o gênero musical que mais conheço e escuto e que tem muitas coisas boas e outras nem tantas assim. Essa já foi uma música que cantei muito e que foi feita por dois artistas que muito admiro que é o Luiz Carlos da Vila e o Cléber Augusto.

Vamos lá!

Romance dos astros (Luiz Carlos da Vila, Cléber Augusto e Jorge Carioca)

Sonhei que um dia
O astro rei à Terra descia
Secava as águas do mar e não mais anoitecia
Só voltava a chover, a noite e as estrelas
Se a lua fosse a sua companheira

Irredutivelmente ela dizia não
E Saturno em vão lhe ofereceu anéis
Ela nem ligava para a estrela D'alva
E nem ouvia a súplica dos menestréis

E o sol ficava mais e mais abrasador
Cego de amor, aí eu me queimei
No auge da trama eu caí da cama
O galo cantou, feliz eu acordei

.

Ao cantar essa música recentemente senti um certo incômodo. Comecei a tirar os astros da música, passando a identificar pessoas se relacionando e não pude deixar de acreditar que a trama cantada se passava entre um homem e uma mulher. Já recebi mulheres no meu consultório que falavam de situações que a música retratava, de uma certa forma.

O que me intriga na construção da música é que para mim a figura do sol exerce uma relação totalmente abusiva em relação à lua e isso é romantizado. Já escuto o que algumas pessoas podem falar: “ah, deixa de ser chato! Isso foi só a inspiração do compositor. Não tem nada a ver com a realidade!”

Entendo que se possa falar isso, mas ao mesmo tempo é estranho imaginar que não exista uma personificação desses personagens da trama baseado em alguma realidade nossa. Ainda mais quando sabemos que dentro da nossa estrutura social machista, muitos homens se comportam exatamente igual a esse sol. Exatamente sentindo-se como um “astro-rei”, quase o centro do universo, onde não sabem receber um não, principalmente das mulheres. Homens que se sentem detentores dos corpos, das escolhas, dos destinos das mulheres. Sejam elas suas companheiras ou não. Que não aceitam um término de uma relação e passam a violentar as mulheres de várias formas diferentes, podendo chegar inclusive ao assassinato.

Aí paro um pouco de escrever e jogo no google algumas palavras para fazer uma busca: “Homens não aceitam final do relacionamento” e a palavra “machismo”. O terceiro link que aparece é de 24.10.2018 e fala de uma pesquisa que estava em andamento, descrevendo que cerca de 50% dos casos de feminicídios acontecidos entre o ano de 2015 e 2018 era porque os homens não aceitavam o pedido de separação da vítima.

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/10/24/metade-fe0minicidios-homem-nao-aceita-separacao.htm

Será que realmente não existe algo grave sendo cantado?

Um dos pontos que eu acho interessante na narrativa do sonho é como se faz um apelo bem explícito de se culpabilizar a vítima porque “irredutivelmente dizia não”. Com direito a manipulações e chantagens emocionais que podem ser vistas no cotidiano das relações entre casais. Imaginem, por exemplo, como deve ser difícil culpar uma mulher que está numa situação abusiva com o seu companheiro e pedir para ela não se separar pensando no bem da família, caso eles tenham filhos? A mulher tem que pensar na estrela Dalva, aceitar ser comprada por saturno ou ouvir a súplica dos menestréis.

E o sol? Não é problematizado, afinal de contas ela estava cego de amor. Não tinha nada a fazer a não ser destruir um bocado de coisas para ter o seu desejo atendido...

Isso e tantas outras coisas podiam ser pensadas.

É importante frisar que, a partir do que eu escrevo, eu não acho que os compositores da música concordam com este tipo de prática, que eles acham certo esse tipo de postura na sociedade. Vejo a letra muito mais como um sinal, um indicativo, uma pequena amostra de uma cultura, de um tempo, onde determinados comportamentos eram e ainda são tão naturalizados que inclusive viram músicas que muitas pessoas cantam sem nem se aperceberem que podem estar reforçando práticas de opressões e violências.

Porém, por mais que eu não possa falar sobre qual é o lugar de quem compôs a letra, acho importante poder analisar essas músicas a partir de uma reflexão mais atual sobre essas relações de poder e ir desconstruindo estruturas que continuam sustentando e, talvez, até produzindo novas subjetividades que ainda estão ligadas a estes valores tóxicos para a sociedade como um todo.  

Em tempos de pandemia, não faço a mínima ideia de quando poderei participar novamente de uma roda de samba ou de algum show em que essa música possa ser tocada. Mas me fantasiei estando nessa situação e gritando ao final dela: Não é não!

Talvez ninguém entendesse...


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