Primeiramente, um pouco de mim:
Durante anos da minha vida eu fui revoltado e, ao mesmo tempo, lamentava muito alguns eventos traumáticos que aconteceram comigo na infância. Durante anos me sentia culpado ou achava que tinha alguma coisa de errado comigo por passar por tantas coisas e achar que os meus amigos tinham uma vida “normal”, sem muitos sofrimentos. Eu me perguntava sobre qual o sentido disso tudo. Tudo era muito confuso para uma criança com mais ou menos 09 anos de idade. Sem entender bem o que se passava comigo, já demonstrava alguns comportamentos de risco, muita agressividade, muita introspecção e um sentimento de vazio grande.
Por indicação da minha mãe, tudo isso ganhou espaço para ser falado, experimentado, chorado, desabafado num processo terapêutico quando eu estava com mais ou menos 13 anos. Ter encontrado esse espaço naquele momento da minha vida foi fundamental para que alguns desses comportamentos, que já estavam ganhando um espaço maior na minha vida, pudessem ser digeridos, elaborados, re-significados, me permitindo dar um destino diferente para tudo isso.
Aos 15 anos, por perceber tantas transformações que estavam acontecendo dentro e fora de mim, decidi ser terapeuta, decidi que queria possibilitar às pessoas um espaço tão importante como aquele estava sendo para mim. Engraçado que eu pensei inicialmente em fazer isso por prazer, por achar que aquilo era algo muito profundo e necessário. Só depois que pensei: “Se eu for psicólogo, ainda vou ganhar dinheiro para fazer isso! rsrs”
De lá para cá, tanto tenho estado constantemente em uma busca pessoal de autoconhecimento, bem como concretizei a minha decisão de adolescente e me tornei psicoterapeuta, me dedicando a escutar e trabalhar terapêuticamente com as pessoas há mais de 10 anos.
Ao saberem do meu entusiasmo pela psicoterapia, já me perguntaram se eu achava que todo mundo deveria fazer terapia. Na época eu estava bem convicto que sim, que o mundo seria bem melhor dessa forma. De uns tempos para cá essa percepção mudou um pouco, onde comecei a achar que a psicoterapia não iria “salvar o mundo”, mas que sim, o autoconhecimento é muito necessário para dar um sentido maior à nossa vida. Porém, ele não acontece somente dentro de um consultório de psicoterapia. Dependendo da busca e consciência de cada um, muitas experiências da vida podem ter um efeito terapêutico e serem muito profundas e contribuírem para uma existência mais plena para as pessoas. Apesar desta mudança de perspectiva, ainda continuo achando que a psicoterapia é um espaço profundo, potente, acolhedor, transformador e que pode estar disponível para as pessoas iniciarem essa busca.
Mas por que que você acha que o autoconhecimento é tão necessário?
Tenho acompanhado pessoas ao longo desse tempo e tenho percebido que estamos vivendo tempos muito difíceis, seja no âmbito mais pessoal, social, cultural, político, econômico, etc. Tempos de uma complexidade que deixa as pessoas atordoadas e confusas com tantas transformações, com um tempo que insiste em correr cada vez mais rápido, com tantas possibilidades diferentes de se estar no mundo, com um maior distanciamento entre as pessoas, com a convivência com tantas contradições, etc. As pessoas estão cada vez mais conectadas com o externo e sendo bombardeadas diariamente por tantos estímulos, tantas situações, emoções, conflitos e não encontram um lugar nessa Roda Viva para pararem um pouco e pensar como cada um está vivenciando tudo isso. Vejo pessoas que têm rotinas muito bem definidas e vivem a vida num certo “piloto automático”, onde é mais importante garantir certas coisas, do que pensar se realmente estão felizes e realizadas com a vida que têm vivido. As pessoas parecem não ter mais tempo para olhar para as suas emoções, principalmente as emoções que são consideradas negativas, e tentam viver como se conviver como se estas emoções não influenciasse as suas vidas. O aumento de pessoas que tomam remédios psiquiátricos me parece mostrar o quanto conviver com essas tensões, sem um olhar mais dedicado a se entender no mundo, pode ser adoecedor. Entretanto, ainda com esse aumento, muitas pessoas tomam apenas o remédio, não se dedicando a fazer uma psicoterapia que poderia ajudar na compreensão e na mudança de certos padrões mentais ou de comportamentos que estão pautadas em emoções não compreendidas que também interferem nesse funcionamento mais fisiológico (Faço essa distinção entre biológico, emocional, mental apenas sendo didático, pois no fundo acredito que o ser humano funciona como um todo organizado onde cada parte destas não estão separadas, se inter-relacionando). O remédio cumpre essa função de uma “cura” rápida, parecendo isentar as pessoas de se darem ao trabalho de olhar mais profundamente para dentro e querem só continuar fazendo o que já fazem. Porém se algumas emoções não são olhadas é provável que alguns comportamentos e consequências não mudem dentro da pessoa, apenas sendo contornadas, acalmadas pelo efeito da química dos remédios. Desta forma, é possível que muitas situações difíceis se repitam na vida da pessoa, não deixando ela ser feliz como ela almeja. Com o passar do tempo, a pessoa pode até entrar numa certa descrença na mudança porque não está entendendo que ela está tentando mudar a partir de um “lugar” que não garante a mudança real. Mas uma boa parte das pessoas escolherá - seja por dificuldades de se enfrentar, inconsciência ou por desconhecimento - sempre estar com os remédios por perto para conter esses desdobramentos de coisas que ela não aceita mexer.
Infelizmente digo que a profissão de psicoterapeuta se assemelha a uma parte da profissão de bombeiros. As pessoas não procuram a psicoterapia quando sentem que tem alguma coisa errada com a vida delas, ou quando sentem que não se conhecem, ou ainda quando estão vivendo uma vida meio sem sentido, ou quando sentem que estão dependendo emocionalmente de uma pessoa para viver. Estas situações não são importantes o suficiente para mobilizar uma boa parte das pessoas para buscar um cuidado maior consigo. Inclusive existe uma grande discrepância quando se fala de “cuidado consigo” entre o quanto se investe no cuidado físico, biológico, corpo, estética - coisas externas que dá para as outras pessoas perceberem - e o quanto se investe em cuidar mais da saúde mental. (novamente parecem ser coisas separadas, mas não são). No que se refere ao cuidado com a saúde mental, muitas pessoas só procuram a ajuda de um profissional quando a casa já está pegando fogo, quando já se está num desespero, quando já não se sabe mais como fazer para evitar entrar em contato com aquele sofrimento, quando já não se está mais querendo viver, quando as questões emocionais já estão se manifestando no físico, etc. Quando algo parece estar muito errado é que se pensa em como cuidar também desta esfera tão importante da vida. Mas uma situação de uma gravidade maior como estas não acontece de um dia para o outro. Muitas vezes os sofrimentos se arrastam por anos na vida das pessoas, até que se torne insuportável e as tragam para buscar uma forma de se cuidar e autoconhecer dando um outro lugar na vida para os sofrimentos.
Como eu falei na primeira parte do texto: Não faço ideia de onde eu estaria se não tivesse começado a ver certas coisa dentro de mim desde muito cedo. Atualmente, sinto que uma boa parte dos meus traumas foram re-significados e hoje olho para eles como tendo sido uma porta de entrada para me direcionar de maneira tão determinada para o lugar de ser terapeuta e ajudar tantas pessoas. Corro o risco de ser meio fatalista ao dizer que é provável que eu nem estivesse aqui escrevendo estas linhas. Facilmente eu poderia ter me perdido nas aventuras de adolescente crescendo em um bairro que me dava acesso a várias situações que colocaram minha vida em risco, como pude ver com amigos bem próximos.
Então apesar de não achar que a psicoterapia vai salvar o mundo, tenho me perguntado: Quem você tem sido sem refletir muito sobre você mesmo? Que comportamentos você tem sustentado na sua vida que não te deixam feliz ou te realiza e que você não parou ainda para tentar entender? Quantos sentimentos guardados não estão permitindo que você possa viver uma história diferente da que você já conhece, se mantendo refém de um passado que ainda não passou dentro de você porque não se deu ao trabalho de colocar para fora o que não te serve mais? Quem você tem o potencial de ser, mas que não se atualiza por nem acreditar que é possível mudar?
Ao escrever isso não estou querendo passar uma sensação de que tudo é lindo ao se fazer terapia ou buscar outra fonte de autoconhecimento. Se fosse assim, a psicoterapia seria muito mais procurada do que é. Para olhar para si mesmo, muitas vezes é necessário uma disponibilidade de encarar aquelas partes nossas que passamos a vida tentando esconder de nós mesmos. Não é simples. Poderia falar muito sobre isso. Fica para outro momento. Porém, se você entende que sem se compreender, você tende a continuar sendo quem você tem sido, qual o mal que existe em tentar encontrar outra forma de viver? Se “não der certo”, é provável que você continue vivendo aquilo que já estava vivendo. Porém, se “der certo”, muitas coisas podem mudar e você só saberá quando estiver vivenciando as mudanças.
Certa vez um grande amigo psicólogo falou que gostaria de viver num mundo onde não fosse necessário existir psicoterapeutas enquanto profissionais Um mundo onde as pessoas pudessem ter acesso a este tipo de relacionamento, de escuta, de acolhimento em praça pública, no meio da rua, no colégio, dentro de casa, na sociedade como um todo. Achei muito importante essa reflexão, inclusive para que o que se vivencia dentro do consultório não se encerre ali e que possamos buscar formas de nos relacionar mais saudavelmente no “mundo lá fora” também. Ainda não estamos nesse momento sócio-cultural, mas acho que podemos contribuir muito para uma mudança coletiva ao cuidarmos também da nossa biografia.
E aí, que tal se conhecer um pouco mais?