domingo, 10 de junho de 2018

Psicoterapia como uma busca de autoconhecimento





Primeiramente, um pouco de mim:
Durante anos da minha vida eu fui revoltado e, ao mesmo tempo, lamentava muito alguns eventos traumáticos que aconteceram comigo na infância. Durante anos me sentia culpado ou achava que tinha alguma coisa de errado comigo por passar por tantas coisas e achar que os meus amigos tinham uma vida “normal”, sem muitos sofrimentos. Eu me perguntava sobre qual o sentido disso tudo. Tudo era muito confuso para uma criança com mais ou menos 09 anos de idade. Sem entender bem o que se passava comigo, já demonstrava alguns comportamentos de risco,  muita agressividade, muita introspecção e um sentimento de vazio grande.


Por indicação da minha mãe, tudo isso ganhou espaço para ser falado, experimentado, chorado, desabafado num processo terapêutico quando eu estava com mais ou menos 13 anos. Ter encontrado esse espaço naquele momento da minha vida foi fundamental para que alguns desses comportamentos, que já estavam ganhando um espaço maior na minha vida, pudessem ser digeridos, elaborados, re-significados, me permitindo dar um destino diferente para tudo isso.


Aos 15 anos, por perceber tantas transformações que estavam acontecendo dentro e fora de mim, decidi ser terapeuta, decidi que queria possibilitar às pessoas  um espaço tão importante como aquele estava sendo para mim. Engraçado que eu pensei inicialmente em fazer isso por prazer, por achar que aquilo era algo muito profundo e necessário. Só depois que pensei: “Se eu for psicólogo, ainda vou ganhar dinheiro para fazer isso! rsrs”


De lá para cá, tanto tenho estado constantemente em uma busca pessoal de autoconhecimento, bem como concretizei a minha decisão de adolescente e me tornei psicoterapeuta, me dedicando a escutar e trabalhar terapêuticamente com as pessoas há mais de 10 anos.


Ao saberem do meu entusiasmo pela psicoterapia, já me perguntaram se eu achava que todo mundo deveria fazer terapia. Na época eu estava bem convicto que sim, que o mundo seria bem melhor dessa forma. De uns tempos para cá essa percepção mudou um pouco, onde comecei a achar que a psicoterapia não iria “salvar o mundo”, mas que sim, o autoconhecimento é muito necessário para dar um sentido maior à nossa vida. Porém, ele não acontece somente dentro de um consultório de psicoterapia. Dependendo da busca e consciência de cada um, muitas experiências da vida podem ter um efeito terapêutico e serem muito profundas e contribuírem para uma existência mais plena para as pessoas. Apesar desta mudança de perspectiva, ainda continuo achando que a psicoterapia é um espaço profundo, potente, acolhedor, transformador e que pode estar disponível para as pessoas iniciarem essa busca.


Mas por que que você acha que o autoconhecimento é tão necessário?
Tenho acompanhado pessoas ao longo desse tempo e tenho percebido que estamos vivendo tempos muito difíceis, seja no âmbito mais pessoal, social, cultural, político, econômico, etc. Tempos de uma complexidade que deixa as pessoas atordoadas e confusas com tantas transformações, com um tempo que insiste em correr cada vez mais rápido, com tantas possibilidades diferentes de se estar no mundo, com um maior distanciamento entre as pessoas, com a convivência com tantas contradições, etc. As pessoas estão cada vez mais conectadas com o externo e sendo bombardeadas diariamente por tantos estímulos, tantas situações, emoções, conflitos e não encontram um lugar nessa Roda Viva para pararem um pouco e pensar como cada um está vivenciando tudo isso. Vejo pessoas que têm rotinas muito bem definidas e vivem a vida num certo “piloto automático”, onde é mais importante garantir certas coisas, do que pensar se realmente estão felizes e realizadas com a vida que têm vivido. As pessoas parecem não ter mais tempo para olhar para as suas emoções, principalmente as emoções que são consideradas negativas, e tentam viver como se conviver como se estas emoções não influenciasse as suas vidas. O aumento de pessoas que tomam remédios psiquiátricos me parece mostrar o quanto conviver com essas tensões, sem um olhar mais dedicado a se entender no mundo, pode ser adoecedor. Entretanto, ainda com esse aumento, muitas pessoas tomam apenas o remédio, não se dedicando a fazer uma psicoterapia que poderia ajudar na compreensão e na mudança de certos padrões mentais ou de comportamentos que estão pautadas em emoções não compreendidas que também interferem nesse funcionamento mais fisiológico (Faço essa distinção entre biológico, emocional, mental apenas sendo didático, pois no fundo acredito que o ser humano funciona como um todo organizado onde cada parte destas não estão separadas, se inter-relacionando). O remédio cumpre essa função de uma “cura” rápida, parecendo isentar as pessoas de se darem ao trabalho de olhar mais profundamente para dentro e querem só continuar fazendo o que já fazem. Porém se algumas emoções não são olhadas é provável que alguns comportamentos e consequências não mudem dentro da pessoa, apenas sendo contornadas, acalmadas pelo efeito da química dos remédios. Desta forma, é possível que muitas situações difíceis se repitam na vida da pessoa, não deixando ela ser feliz como ela almeja. Com o passar do tempo, a pessoa pode até entrar numa certa descrença na mudança porque não está entendendo que ela está tentando mudar a partir de um “lugar” que não garante a mudança real. Mas uma boa parte das pessoas escolherá - seja por dificuldades de se enfrentar, inconsciência ou por desconhecimento - sempre estar com os remédios por perto para conter esses desdobramentos de coisas que ela não aceita mexer.


Infelizmente digo que a profissão de psicoterapeuta se assemelha a uma parte da profissão de bombeiros. As pessoas não procuram a psicoterapia quando sentem que tem alguma coisa errada com a vida delas, ou quando sentem que não se conhecem, ou ainda quando estão vivendo uma vida meio sem sentido, ou quando sentem que estão dependendo emocionalmente de uma pessoa para viver. Estas situações não são importantes o suficiente para mobilizar uma boa parte das pessoas para buscar um cuidado maior consigo. Inclusive existe uma grande discrepância quando se fala de “cuidado consigo” entre o quanto se investe no cuidado físico, biológico, corpo, estética - coisas externas que dá para as outras pessoas perceberem - e o quanto se investe em cuidar mais da saúde mental. (novamente parecem ser coisas separadas, mas não são). No que se refere ao cuidado com a saúde mental, muitas pessoas só procuram a ajuda de um profissional quando a casa já está pegando fogo, quando já se está num desespero, quando já não se sabe mais como fazer para evitar entrar em contato com aquele sofrimento, quando já não se está mais querendo viver, quando as questões emocionais já estão se manifestando no físico, etc. Quando algo parece estar muito errado é que se pensa em como cuidar também desta esfera tão importante da vida. Mas uma situação de uma gravidade maior como estas não acontece de um dia para o outro. Muitas vezes os sofrimentos se arrastam por anos na vida das pessoas, até que se torne insuportável e as tragam para buscar uma forma de se cuidar e autoconhecer dando um outro lugar na vida para os sofrimentos.


Como eu falei na primeira parte do texto: Não faço ideia de onde eu estaria se não tivesse começado a ver certas coisa dentro de mim desde muito cedo. Atualmente, sinto que uma boa parte dos meus traumas foram re-significados e hoje olho para eles como tendo sido uma porta de entrada para me direcionar de maneira tão determinada para o lugar de ser terapeuta e ajudar tantas pessoas. Corro o risco de ser meio fatalista ao dizer que é provável que eu nem estivesse aqui escrevendo estas linhas. Facilmente eu poderia ter me perdido nas aventuras de adolescente crescendo em um bairro que me dava acesso a várias situações que colocaram minha vida em risco, como pude ver com amigos bem próximos.


Então apesar de não achar que a psicoterapia vai salvar o mundo, tenho me perguntado: Quem você tem sido sem refletir muito sobre você mesmo? Que comportamentos você tem sustentado na sua vida que não te deixam feliz ou te realiza e que você não parou ainda para tentar entender? Quantos sentimentos guardados não estão permitindo que você possa viver uma história diferente da que você já conhece, se mantendo refém de um passado que ainda não passou dentro de você porque não se deu ao trabalho de colocar para fora o que não te serve mais? Quem você tem o potencial de ser, mas que não se atualiza por nem acreditar que é possível mudar?


Ao escrever isso não estou querendo passar uma sensação de que tudo é lindo ao se fazer terapia ou buscar outra fonte de autoconhecimento. Se fosse assim, a psicoterapia seria muito mais procurada do que é. Para olhar para si mesmo, muitas vezes é necessário uma disponibilidade de encarar aquelas partes nossas que passamos a vida tentando esconder de nós mesmos. Não é simples. Poderia falar muito sobre isso. Fica para outro momento. Porém, se você entende que sem se compreender, você tende a continuar sendo quem você tem sido, qual o mal que existe em tentar encontrar outra forma de viver? Se “não der certo”, é provável que você continue vivendo aquilo que já estava vivendo. Porém, se “der certo”, muitas coisas podem mudar e você só saberá quando estiver vivenciando as mudanças.


Certa vez um grande amigo psicólogo falou que gostaria de viver num mundo onde não fosse necessário existir psicoterapeutas enquanto profissionais Um mundo onde as pessoas pudessem ter acesso a este tipo de relacionamento, de escuta, de acolhimento em praça pública, no meio da rua, no colégio, dentro de casa, na sociedade como um todo. Achei muito importante essa reflexão, inclusive para que o que se vivencia dentro do consultório não se encerre ali e que possamos buscar formas de nos relacionar mais saudavelmente no “mundo lá fora” também. Ainda não estamos nesse momento sócio-cultural, mas acho que podemos contribuir muito para uma mudança coletiva ao cuidarmos também da nossa biografia.


E aí, que tal se conhecer um pouco mais?

sábado, 9 de junho de 2018

Revelando-Ser - Convite no Facebook

Olá pessoas.
Postei esse texto no dia 05 de junho de 2018, chamando as pessoas para conhecer mais de perto esse projeto tão importante.
Vou deixar que a própria postagem "fale por si"...rsrs

.
Boa tarde, pessoas. Queria compartilhar com vocês uma parte do que venho fazendo profissionalmente há algum tempo e que tem ganho ainda mais espaço na minha vida recentemente.

Algumas pessoas já devem ter visto que compartilho eventos, postagens ou vídeos de uma página que eu eu sigo aqui no FB, Revelando-Ser. Este é um projeto que eu criei, juntamente com alguns amigos e profissionais, e que já vem sendo gestado há cerca de dois anos. O objetivo desse projeto é colaborar na descontrução do “muro do silêncio” que existe acerca de pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência e que carregam consigo alguma ferida desse passado.

Desde 2010 que eu trabalho diretamente com a temática do abuso sexual, seja em projetos sociais, ou atendendo no meu consultório particular. Nesses dois espaços profissionais comecei a entrar em contato com essa demanda das pessoas adultas e percebi que o abuso sexual era algo muito mais frequente do que eu imaginava e do que se falava na sociedade. Desde então, tive vontade de criar um projeto que pudesse atender a esse público especificamente. Não porque é o público mais importante a ser atendido ou trabalhado, mas, sim, porque percebi que existia uma lacuna, tanto nos discursos, visibilidade, pesquisas acadêmicas, etc. - quanto nas políticas públicas de atendimento a esse público.

Desde então venho estudando, discutindo, refletindo e atendendo a estas pessoas que, parece que por sincronia, começaram a me procurar. Eu nunca tinha parado para dizer que trabalho especificamente com este tema, para gerar uma demanda de pessoas que me procurassem direcionados por uma divulgação. As pessoas foram chegando em momentos diferentes e isso me fez conhecer ainda mais de perto esta realidade.

Uma realidade confusa, permeada por muitas contradições que não se excluem, que se misturam, compondo uma paisagem de luz e sombra de difícil compreensão caso o ouvinte tenha pressa para entender o que “de fato” aconteceu. Algumas das contradições que tenho acessado a partir da situação das pessoas adultas e o abuso sexual:
- Escuto tanto relatos de lembranças intrusivas que insistem em não ficar no passado, voltando em muitos momentos em que o que a pessoa mais deseja é estar em paz e seguir adiante; bem como escuto relatos de “apagões” durante anos da infância onde a pessoa não tem ideia do que aconteceu com ela, não conseguindo entender quais as marcas que ela carrega. Não é fácil saber diferenciar o que não se lembra por uma dificuldade resgatar na memória mesmo, do que não se é lembrado por ser muito difícil para a pessoa suportar.
- Ouço pessoas que ficaram com uma profunda dificuldade de se permitir ser tocadas sexualmente por outras pessoas; como também ouço pessoas que têm dificuldades de encontrar um limite sexual entre elas e as outras, parecendo ter uma “abertura” que acaba, em alguns casos e paradoxalmente, também produzindo uma dificuldade de ser tocada mais profundamente por outras pessoas;
- Vejo pessoas que se reconhecem no lugar de uma vítima e que se sentem profundamente magoadas com a pessoa que esteve no lugar do abusador (a) e que não conseguem olhar sequer no rosto deste (a), o culpando por tudo que deu errado na sua vida; como vejo também pessoas que introjetaram de maneira significativa que ELAS foram culpadas pelo seu abuso, tendo dificuldade, inclusive, de expressar algum sentimento de mágoa ou raiva daqueles que foram autores daquela situação;
- Vejo pessoas que passaram por situações que em alguns manuais descrevem como um abuso sexual potencialmente mais grave - seja por ter uma violência física e ameaças, ou por ser um por um familiar muito próximo, de muita confiança - e que dizem não se sentirem muito afetadas pelo abuso; como também escuto pessoas que tiveram abusos que poderiam ser descritos como “mais leves” e que ficaram altamente marcadas por aquela situação.

Não se tem como generalizar qual será a marca que uma pessoa vai levar consigo ao ter passado por um abuso sexual. Eu falo acima de situações que parecem ser opostas, mas é muito comum encontrar gradações dessas experiências numa mesma pessoa. É possível que algumas pessoas tenham se envolvido em situações sexuais na infância e adolescência e que isso não tenha que, necessariamente gerar um trauma na sua vida. Porém, tenho encontrado pessoas que até reconhecem que esses eventos marcaram e que ainda assim não conseguem falar abertamente sobre isso, que precisam de um tempo para poderem se sentir seguras de entrar nesses porões e ver sentimentos que podem ser muito desestabilizadores, quase que desestruturantes em termos de personalidade.

Já me perguntaram se eu realmente acho válido tocar nesses assuntos depois de tanto tempo do ocorrido, quando parece que, de alguma forma, as coisas já se acomodaram e que a “violência não está mais acontecendo”. Essa não é uma resposta simples. Não é simples dizer que a violência não está acontecendo ainda. Não é simples mensurar o quanto é sofrido o silêncio, o quanto algumas pessoas ficaram isoladas dentro da própria família. Também não é simples medir o quanto a pessoa teve que cindir com várias coisas dentro dela para guardar esta situação somente com ela. E reparem que não estou nem falando de outro dilema que surge em muitas situações onde a pessoa começa a mexer nesses conteúdos: “Devo contar para as pessoas?”. “Vivo sem poder dizer o porquê que eu sempre fui uma pessoa agressiva, depressiva, ou desconectada da minha realidade. Porque, se eu for falar, eu toco num segredo que sei que ninguém quer desenterrar”. Isso também não é simples.

Porém, começar a mexer nisso também traz desafios.. Não é um convite que se resume em “vamos começar a falar sobre isso e você vai ver que tudo se resolverá e rapidamente você estará em paz”. Muitas vezes o que acontece é a pessoa passar por um deserto, onde muitas vezes ela tem vontade de desistir - inclusive algumas já interromperam o processo e não voltaram mais, outras pararam e depois retomaram em seguida - e que eu, enquanto terapeuta, ofereço suporte, confiança no processo, força, e companhia para esses momentos difíceis. Poderia falar muitas coisas desses processos. Fica pra uma próxima.

Apesar de eu observar que algumas mudanças referentes a esta temática acontecem de maneiras mais graduais, com o tempo, tenho sentido e acompanhado com muita alegria processos onde as pessoas estão conseguindo lidar melhor com as suas vidas, com os seus desejos, com os seus passados, e consequentemente com os seus futuros. São essas experiências que têm me dado uma motivação maior de estar encabeçando esse projeto. Apesar de todo cuidado e delicadeza que o tema requer, tenho acreditado que temos que falar mais sobre isso. Sincronicamente tem aparecido cada vez mais casos de pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência nas redes sociais, reportagens, reforçando ainda mais essa intenção que nutrimos há dois anos.


Queria, por fim, convidar vocês a conhecerem um pouco mais do nosso projeto, apresentar o nosso site: revelandoser.org . Para que possamos falar mais sobre isso, quem sabe indicar para pessoas que possam se beneficiar, pessoas que passaram por essa situação, ou profissionais que queiram saber um pouco mais do que estamos estudando, refletindo, produzindo por aqui. Estamos fazendo, pelo menos um encontro mensal para falar do projeto e aprofundar alguns temas relacionados ao nosso objetivo principal. Em breve estaremos oferecendo materiais em formas de encontros com uma maior carga horária e específicos para aprofundar temas que os encontros mais breves não dão conta. Ainda estamos ajeitando algumas coisas, mas, cada passo que a gente vai dando, motiva a gente para fazer ainda mais.
Edit: podem compartilhar à vontade está postagem.

"Olho por olho e o mundo acabará cego" (Gandhi)



Olá pessoas. Eu tenho me sentido muito mobilizado com tudo que está acontecendo em nosso país e queria trazer algumas reflexões que não param de falar dentro de mim há muito tempo. Acho que escrever vai ser até uma forma de organizar mais as ideias e partilhar com mais gente o que eu sinto através das minhas experiências. Espero que os textões que vão começar a aparecer não sejam tão cansativos para quem vai ler…rs.


Um pouco da minha história para resumir bem resumido de onde eu falo. Desde a adolescência que comecei a me envolver com movimentos estudantis e comecei a ter uma preocupação maior com o social, com o coletivo, com a necessidade de se refletir e problematizar a forma como vivemos e quais os desdobramentos desta forma em todas as pessoas. Essa preocupação, junto com uma busca meio precoce de autoconhecimento, me fez escolher a profissão de psicólogo, como uma forma de cuidar mais de mim e das pessoas como um todo.

Na minha trajetória pessoal e profissional, sempre estive em contato com duras realidades de exclusão, desigualdade, marginalidade, violência, etc. Trabalhei com pessoas em situação de rua, com adolescentes em conflitos com a lei e coordenei um projeto social em uma comunidade de baixa renda aqui da cidade de Recife com a temática do abuso sexual. Estas passagens profissionais, juntamente com uma biografia atravessada pelo contato com estas questões, contribuíram para que eu passasse a me questionar e questionar quem estava ao meu redor, a partir de reflexões dentro dos movimentos políticos de esquerda. Mas nunca me filiei a nenhum partido específico.

Quem me conhece um pouco mais de perto sabe que, de alguns anos para cá - mais especificamente desde o começo de 2013 - eu passei a me ausentar mais destas discussões e fui me dedicar a cuidar mais de mim,  a fortalecer meu lugar de psicoterapeuta individual no meu consultório, me dedicar mais a uma conexão com a minha espiritualidade e recolhi um pouco mais a minha veia social e política de maneira mais clara e explícita no meu trabalho, nos meus discursos e problematizações. Porém, nunca deixei de me preocupar e de tecer considerações sobre isso para as pessoas mais próximas e sinto vontade de voltar a estar mais no âmbito público para continuar trocando ideias e quem sabe contribuindo, dentro de minhas limitações, para se mudar tanta coisa que tem acontecido. Não me sinto com metade das leituras necessárias para uma análise mais profunda e verídica que esgote o que tem acontecido no nosso país.Tenho contato direto com pessoas das mais variadas inclinações políticas e tenho me deparado com um sentimento de confusão generalizada que dá margem para posturas também confusas diante dos acontecimentos dos últimos anos. Tenho a impressão de que tem tantas coisas envolvidas nas nossas atuais demandas sociais e culturais que toda vez que vejo alguém fazendo uma análise da realidade, sempre tenho a sensação de que parece ser algo mais complexo do que o que está sendo apresentado. Isso não significa que não temos pessoas muito bem capacitadas e críticas refletindo e tentando levar isso para um número maior de pessoas. Nem que esse esforço não seja legítimo e necessário. Nem tampouco que o que venho trazer agora já não foi falado de alguma forma, ou que vai ser o mais profundo e completo quadro da realidade, abrangendo toda essa complexidade da qual estou falando. Não tenho essa pretensão. Provavelmente será tão limitado ou mais do que outras perspectivas. Porém, ainda assim acho válido tentar contribuir.

Indo direto ao ponto que eu queria abordar neste primeiro post: o que temos feito para melhorar o atual momento que estamos atravessando no nosso país? Tenho pensado muito no movimento de separação, intolerância, aversão, ódio, medo e outras palavras semelhantes que tomou conta de maneira mais explícita a nossa sociedade. (Provavelmente esta postagem não estará salvaguardada de também ser alvo dessa onda. Faz parte.) Ao meu ver, estamos meio embotados, meio cegos por tantos sentimentos de impotência, de desesperança, de injustiça, de julgamento e condenação, de “não quero mais contato com quem pensa diferente de mim”, de querer achar quem é o culpado, o mais alienado, o mais politizado, etc. Ao me deparar com isso, tenho me perguntado como fazer para não ser mais uma gota nessa onda de separação. Como fazer isso sem me abster de participar da vida política? Talvez seja importante refletir que se abster de participar é uma forma de participação, não é possível não estar participando de um momento político. Mas, como não ficar plugado nessa conexão tão destrutiva que todos têm sentido e ainda assim poder dialogar com as pessoas? Ficar calado e dizer que não se interessa por estes assuntos políticos, parece mais como aquela estratégia de avestruz de colocar a cabeça debaixo da terra e achar que ninguém vai ver ficando com o resto do corpo de fora. Mas tenho visto muita gente que quer e pode contribuir com o mundo não se colocando, porque não acham que existe espaço para dialogar com as demais pessoas. Logo parece que, ou você se pluga nessa onda e vai bater boca no facebook ou outras redes sociais, ou você se abstém de participar. Como fazer para não tentar “combater” uma intolerância, reforçando ainda mais essa onda de intolerância que vem crescendo a cada dia? Não falo isso do lugar de concordar com vários discursos e práticas que estão sendo feitas por todos os lados. Só tenho me perguntado se reagir desta forma, como uma boa parte das pessoas que dizem querer melhorar a sociedade está reagindo, está adiantando para uma mudança concreta no rumo que as coisas estão tomando. Eu tenho me perguntado se o movimento de se entrincheirar nesta “guerra”, fazendo uma delimitação clara entre quem é o lado bom e o lado mau da história, tem ajudado a se encontrar soluções criativas e eficazes de mudança. Certa vez, um grande sábio e amigo questionou a eficácia de “lutar” por uma melhoria coletiva sendo intolerante com os intolerantes, injusto com os injustos e impiedoso com os impiedosos. Eu tenho me lembrado dele cada vez mais.

Meu lugar de terapeuta há mais de 10 anos me colocou em contato com pessoas que socialmente falando são “ruins” ou fazem muitas coisas que não são boas. Não chega no consultório somente pessoas felizes, com valores nobres, solidárias, amorosas, e com um senso de justiça social, etc. De uma certa forma lidamos muito com as sombras das pessoas, com a violência, com o egoísmo, com a manipulação, com o individualismo, etc. Porém, na minha prática tenho encontrado luz na sombra, tenho visto que muitas destas mesmas pessoas não tem somente “aquela banda podre”, que têm muitas coisas “boas”, importantes para a sociedade, mas que, perdidos na sua história, não sabem muito como atualizar essas qualidades. Pessoas que estão em busca de algo que todo mundo quer - ser aceito, amado, reconhecido, ser feliz, crescer e se realizar - mas que, diante de alguns contextos, encontraram formas e arranjos muito diferentes para sobreviver. Muitos desses arranjos são opostos ao que se entende como bom para a sociedade e é preciso que não se tenha uma visão romântica de não levar isso em consideração. Mas essa prática profissional me coloca em contato com essa complexidade que falei mais acima. Ninguém é só luz ou só sombra: tem muito mais coisas em jogo do que colocamos nos nossos desabafos e análises nas redes sociais sobre quem são os vilões e mocinhos das nossas histórias. Tenho achado que parece simplista reduzir uma pessoa a ser uma pessoa má, porque ela cometeu algum delito que dentro do contexto da vida dela, tem algum sentido. Isso não faz com que ela não tenha que arcar com as consequências do delito. Mas isso não desumaniza a pessoa, não coloca ela no lugar de que ela é somente aquilo que ela fez. Estou falando isso numa esfera individual, mas no coletivo isso é ainda mais complexo. Também me parece simplista reduzir uma pessoa que vota em Lula ou em Bolsonaro, tal como temos feito o tempo todo nas nossas comunicações, como alienado, canalhas, fascistas, comunistas, ou que merece ser desprezado, ou que quer ver o país se afundar, entre tantos outros jargões. Falei lá em cima que me aproximei e desenvolvi parte das minhas reflexões a partir de um viés político de esquerda. Atualmente tenho pensado se ainda me identifico com esse lugar social. Não por discordar de que muitas das bandeiras que são encabeçadas por estes movimentos são importantes. Mas porque, diante do aumento da intolerância de todos os movimentos - direita, esquerda, de centro, conservador, liberal, capitalista, socialista, comunista, etc. - me parece que eu gostaria de encontrar um lugar que fosse mais inclusivo, que me unisse mais às pessoas do que me cristalizasse ainda mais em uma polarização que não faz mais sentido para mim.

Lembra uma definição de ética que ouvi na faculdade uma vez. Era algo mais ou menos assim: “Ética é incluir o maior número de pessoas naquilo que chamamos de nós”. Quem trazia isso era o Jurandir Freire Costa, trazendo uma reflexão sobre como tratamos de maneira muito diferente as pessoas que aproximamos simbolicamente do NÓS mesmos e AQUELES que são os OUTROS. Muitos dos sentimentos ruins que acusamos que os OUTROS têm contra NÓS, passamos a reagir nutrindo estes mesmos sentimentos contra esses OUTROS. Mas, e se esses OUTROS também fossem tão humanos quanto NÓS? Como seria minha postura se eu tivesse que aceitar que a situação é muito mais complexa? Por mais resolutivo e embasador para uma luta social que seja, uma análise que tende a simplificar essa complexidade, deixa de fora pontos importantes e desumaniza quem está do outro lado da trincheira, fazendo que continuemos nessa luta eterna do “bem contra o mal”. Como seria o meu discurso, caso eu tentasse entender que - por mais bizarro que possa parecer aquele meu amigo de infância, aquele meu familiar, ou a pessoa distante do trabalho - o diálogo ainda é uma alternativa possível e talvez, extremamente necessária, para se produzir união ao invés de separação?

Tenho lembrado da famosa estratégia do “Dividir para conquistar”. Parece tão mais fácil para quem está no poder conseguir subjugar um povo, uma nação quando ela está cindida, dividida, separada, sem conseguir se comunicar. Sinto que é muito difícil sentar para ouvir as “asneiras” que o eleitor do Lula tem para falar, caso você já tenha decidido que nada de bom pode vir de lá. Bem como deve ser muito difícil escutar o que o eleitor de Bolsonaro tem para argumentar sobre como vai ser bom ter ele como presidente. Para mim, tem parecido que, independente da capacidade crítica de cada lado, quem está certo ou errado, se usarmos as análises políticas para gerar ainda mais separação, mais desumanização, estamos, enquanto sociedade, perdendo um pouco mais essa “guerra”. Parece que todos os lados se dizem muito racionais em suas análises e justificativas. Mas, talvez, pudéssemos refletir se por trás dos nossos discursos objetivos, não estamos carregando eles de toda sorte de emoções reprimidas e desagregadoras que geram essa cegueira que falei lá em cima. Cegos para uma possibilidade de ainda pensar o que seria melhor para aquele NÓS maior, fazendo com que recorramos a estratégias muito mais passionais, excludentes, partidárias e parciais de saídas para essa crise.

A direita é apontada como a mais opressora, sem diálogos, autoritária, etc. Mesmo buscando não me cristalizar nos lados, como eu falei, tendo a concordar com isso, que tradicionalmente encontramos na direita esse comportamento. Porém, me pergunto se a mudança desse estado atual se dará quando a esquerda, que é mais favorável e aberta ao diálogo, se igualar em intransigência e parta para ser tão violenta quanto AQUELES que ela busca “combater”. Não quero dizer que é preciso desistir da mobilização, da manifestação, da busca de solução. Porém que o motor que me move nessa luta, não seja alimentado pelo mesmo combustível que move o que eu quero tanto “combater”. Tenho me perguntado se não seria mais “humanamente útil” tentar “desplugar” da energia de guerra e continuar buscando formas de mobilizar e melhorar a situação. Lembro que quando eu era muito raivoso e intolerante dentro dos meus pensamentos, (basta ver as postagens anteriores) sentia que era quase impossível continuar com forças para lutar, sem ser alicerçado no meu sentimento de revolta ou raiva. Parecia que tirar isso de mim, era como tirar o que me movia. Levei alguns anos para tentar encontrar esse outro lugar. Nem sei ainda se já o achei, mas esse texto é mais uma tentativa de colocar essa aposta em prática.

Como contextualizei no início, estava meio afastado de algumas discussões e posso parecer bem rasteiro ao falar o que quero nesse parágrafo de agora. Porém, talvez ele seja ilustrativo do que eu quero dizer. Na primeira panelada que se teve no país, vi a esquerda tentando alertar o golpe que estava acontecendo ou por vir. Acredito que muita gente que bateu panela de verde e amarelo, não tinha muita ideia do que estava acontecendo e que muita gente foi manipulada mesmo. Porém, ao acontecer todo o desmantelamento que se sucedeu depois desses eventos, sinto que algumas pessoas que bateram panelas quiseram rever o seu posicionamento por perceberem a manipulação e o engano. Não sei se elas passaram a achar totalmente que era golpe ou que tudo o que a esquerda falava era verdade, mas vi uma certa abertura para se questionar onde estava a verdade, inclusive uma possibilidade de reflexão sobre a influência negativa da mídia e dos movimentos que se diziam apartidários, quando que não eram. Achei que aquele era  um momento propício para um movimento de maior união e diálogo entre pessoas que estavam em trincheiras opostas. Porém, com uma certa tristeza, fui vendo como muitas pessoas de esquerda, que sei que têm um compromisso em querer melhorar a sociedade para todos de verdade, não conseguiram abrir mão da raiva, do orgulho, do sentimento de “ir a forra” e foram julgando, criticando, desumanizando pessoas que poderiam se aproximar de um diálogo. Muitos “paneleiros”, “patos” podem ter ficado sem lugar para se abrigarem socialmente nessa “guerra” por terem sido tão execrados pela esquerda, como a própria esquerda acusa a direita de fazer. Sei que a análise pode ser bem mais complexa do que isso, mas ainda assim me pergunto se ainda não estamos fazendo isso nesse momento onde a crise se agravou ainda mais. Lógico que, enquanto alguém que se identifica mais com as causas da esquerda, também foi muito doído e revoltante para mim ver tantas coisas acontecerem. Ver, por exemplo, aquela votação bizarra, com justificativas ainda mais bizarras, de quando votaram a favor do impeachment da Dilma. Imagino o quanto deve ter doído para quem tanto já lutou para conseguir coisas melhores para o país ver o que aconteceu e prever o que estava e ainda está por vir. Mas ainda assim, tenho me perguntado até onde vamos precisar chegar, enquanto tempos sombrios da sociedade, para poder repensar se continuar se entrincheirando é o melhor a fazer. Tenho me perguntado se as trincheiras que estão de maneiras mais rígidas atualmente não nos colocam em um lugar de “certezas absolutas” sobre si e sobre o outro que dão margem a esses sentimentos que promovem essa cegueira diante do outro?

Observo que no meu texto, eu falo muito das perguntas que tenho me feito e menos das respostas que cheguei depois delas.  Isso fica para outro momento. Tenho ideias e projetos que estão sendo gestados e pensados a partir dessa intenção de gerar mais união e contribuir, influenciar nesse todo. Vou trazendo aos poucos.

Por fim, não quero com tudo isso que escrevi encontrar uma outra trincheira, a saber, a trincheira dos não-entricheirados. Não sei se ficou claro, mas, no momento atual, sinto que as cristalizações estão mais a serviço do desmonte da sociedade do que da busca de uma solução inclusiva para todos. Esta frase me parece até redundante, pelo simples fato de não saber dizer se existe alguma outra solução possível que não seja a “inclusiva para todos”, incluindo até AQUELES OUTROS que tenho tanto considerado como meus inimigos.

(OM) Estou de Volta

O Mundo aos Olhos de um Misantropo

02.06.2018

Olá pessoas.
Quanto tempo sem escrever. 
Mas é muito bom poder voltar aqui e ver o percurso que eu tenho feito.
Nas últimas postagens que fiz aqui me vi saindo do lugar inicial onde eu comecei as primeiras postagens e caminhando para outro lugar.
Inicialmente só conseguia falar das coisas que me afligia de um lugar muito revoltado, raivoso e indignado, gerando muita energia de separação com os outros e comigo mesmo. Quem estiver chegando por aqui agora, vale a pena dar uma olhada nos posts anteriores.
Gradativamente as coisas foram mudando e eu fui anunciando esse outro lugar mais calmo dentro, ainda incerto, sem saber muito bem como seria, mas apostando que era possível falar e mobilizar as pessoas de um lugar de união, confiança e otimismo. 
Lembro agora daquela frase do filme Matrix:
"Cedo ou tarde, você vai aprender, assim como eu aprendi, que existe uma diferença entre CONHECER o caminho e TRILHAR o caminho." (Morpheus)

Quando eu disse que apostava que era possível encontrar esse lugar, não pensei que iria demorar quase 05 anos para eu voltar aqui e voltar a trocar com as pessoas. 
Fui mergulhar em tantas coisas, fui obrigado a ficar mais comigo, com minha história de vida e entrar em contato com dores profundas que estavam na base daquela revolta toda.
Lembrei agora daquele trecho da música Sem Fantasia de Chico Buarque:

"Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei 
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus."

Foram inúmeras discussões com Deus durante esse tempo. Acho que estamos nos reconciliando...rsrs
Eu achava que minha revolta tinha somente uma causa externa: o estado atual da sociedade. Não que a situação não seja causadora de muita revolta. Porém, tenho experimentado que, ao depurar um pouco mais o veneno que eu trazia comigo, posso falar das mesmas coisas com outra energia.
Por isso estou voltando agora. 
Não estou iluminado, não curei tudo que tem pra curar, muito menos não sou pego de surpresa de vez em quando por um monte de sentimentos que já foram bem mais intenso antes.
Mas já me sinto muito diferente mesmo. Acho que vai ser possível ver isso nas próximas postagens.

A única coisa que não mudou foi a disponibilidade para escrever muito...rsrs. Não dá nem pra se animar com essa postagem aqui. Essa é só pra anunciar a volta. Mas já tenho outros que seguem na mesma pegada dos textos de antes. Textões! Juro que vou tentar ser mais sintético...rsrs

Bem é isso. 
Estou muito feliz com esse retorno. Sinto que pode ser mais construtivo com a energia que estou agora do que como era antigamente.
Confesso que não sei se continuarei escrevendo aqui ou se criarei outro blog. 
Sinto que tanta coisa mudou que tenho minhas dúvidas se ainda faz sentido ficar por aqui. Ao mesmo tempo gosto dessa continuidade, de que as pessoas possam ver esse passo-a-passo das mudanças que se processou por aqui. Depois vejo o que faço com isso. Já tenho outro blog em construção com uma descrição e proposta mais atualizada. Acho que vou passando os textos para lá e fico de lá por vez...rs
Sejam bem-vindxs para esse novo momento.
Namastê.

(OM) "Seja a mudança que você quer ver no mundo" (Mahatma Gandhi)

O Mundo aos Olhos de um Misantropo
.
29.08.2013

Quanto tempo sem escrever...rs
Durante esse quase um ano, já tinha pensando inúmeras vezes sobre o último post escrito ter sido justamente o que eu falava que estava depurando o veneno. Parecia que eu só sabia alimentar a minha vontade de compartilhar o que tinha dentro de mim se estivesse pautado no meu veneno. Voltando a escrever aqui percebo que posso continuar me expressando a partir de um outro lugar. Este post é a prova mais concreta disso.
Como vocês sabem, não é de hoje que me preocupo com o mundo em que vivo. Sempre gostei de livros, músicas, filmes, etc. que trouxessem reflexões sobre o que acontece em nossas vidas de “bom” e de “ruim”. Com o passar do tempo percebi que algumas coisas que eu considerava boas, não eram tão boas assim, bem como reconheci situações muito difíceis que me trouxeram grandes aprendizados e que hoje em dia fazem parte do meu tesouro pessoal.
Aqui neste blog pude colocar para fora certos incômodos e críticas acerca de temas que são importantes para mim e que eu sentia que podia contribuir com mudanças na sociedade, a partir das coisas que via no meu cotidiano pessoal e profissional. Ainda continuo com a mesma preocupação, incômodos e vontades de fazer algo que provoque mudanças, porém, sinto que de um lugar bastante diferente do qual me situava quando escrevia anteriormente. Não sei bem se ainda faz sentido continuar escrevendo desse novo lugar aqui. Me sinto muito menos misantropo...rs. Talvez ainda possa usar desse espaço para colocar minha nova maneira diferente de ver a vida. Mas tenho certeza que a partir de um lugar de muito mais tranquilidade dentro de mim.
A partir de novas experiências pessoais, terapêuticas, espirituais, passei a vivenciar muito mais intensamente aspectos e conceitos que já entendia racionalmente sobre como tudo neste mundo está interligado e a implicação disso para a construção de uma sociedade mais justa para todos, de fato. A diferença entre o passado e o presente reside no fato de que certas contradições percebidas anteriormente alimentavam muitas críticas, julgamentos, raivas, etc. em relação ao que eu considerava errado na sociedade. Eu vivenciava estas coisas de maneira muito intensa – como eu acho que vocês puderam ver – porque sempre conseguia ver a urgência de certas situações, e me incomodava bastante com tod@s que não se preocupavam com o mundo da mesma forma que eu. Esta situação era muito angustiante e fazia com que eu me sentisse impotente, frustrado, sentindo certa aversão e isolado/separado do resto das pessoas que estavam à minha volta. Por isso o Misantropo do blog.
Reclamava da sociedade, onde também me incluía, apontando o egoísmo, individualismo, indiferença, irresponsabilidade e outras críticas severas, muitas delas pertinentes. Mas algo que estava de pano de fundo era a minha incompreensão e revolta pela falta de sentimento de união entre as pessoas, o qual contribuía para que as pessoas só pensassem em si e nos “seus”, não se preocupando muito com os demais.
Com essas mudanças percebi que eu estava reclamando de algo, acusando algumas pessoas – ou até grupos de pessoas – de serem preconceituosas, de se acharem mais importantes, de não se colocarem como iguais com os outros, de não buscarem uma maior vivência de estar em união com todos e, ao mesmo tempo, estava fazendo a mesma coisa com eles. Eu me senti sendo “intolerante com os intolerantes, injusto com os injustos e impiedoso com os impiedosos” (Austro Queiroz). Percebi que eu estava querendo construir um mundo de paz, alimentando guerra contra uma boa parte do mundo; querendo trazer uma reflexão sobre solidariedade pautada em julgamentos e críticas, muitas vezes generalistas, que não davam conta da complexidade que é o viver em sociedade; querendo que todos entendessem o sentido do “Somos todos um”, me separando de pessoas, inclusive muitas destas sendo pessoas muito próximas e queridas por mim. Mais importante ainda, percebi que eu queria levar paz para o mundo, sem conseguir nem ter paz comigo mesmo. Volto para a frase do Gandhi.  
Dentre estas coisas todas que falei percebi que eu alimentava muita energia de separação com o mundo a partir das minhas críticas e julgamentos. Não acho errado ter senso crítico e procurar expressar as coisas que não estão contribuindo para uma melhor vivência comunitária, social, cultural, ambiental planetária, etc. Mais do que nunca sei algo que acontece do outro lado do mundo tem influências diretas e indiretas na minha vida. Em decorrência dessa vivência, sinto cada vez mais a implicação de todos para uma mudança deveras coletiva. Porém, sinto que na minha experiência, depois de alimentar muitos sentimentos negativos dentro de mim para sustentar o meu olhar crítico em cima de muitas coisas “negativas” que eu via, percebi que quero ficar mais em paz comigo e com todos à minha volta, para, a partir deste lugar, poder realizar as mudanças significativas que tenho poder para realizar. Confundi durante muito tempo, o “indignar-se” com “entrar em guerra contra algo”, sofrimento pelo estado atual das coisas. Como se só fosse possível encontrar forças para mudar a atual situação se ela estivesse pautada em sofrimento. Mas o sofrimento sempre era embasado por: “pessoas más ou inconscientes fazem coisas erradas prejudicando toda a sociedade. Enquanto eu que tenho um pouco mais de consciência fico de mãos atadas por não poder fazer nada contra essa maré”.
Quanto julgamento dos outros e de mim mesmo! Este meu novo estado de espírito não significa dizer que as coisas estão “mais certas” e por isso não se deve fazer nada. Indica apenas que tenho muito que fazer, mas que quero fazer isso a partir de um lugar de união com as pessoas e não a partir das críticas e sofrimentos. Muitas mudanças são necessárias e urgentes, mas procuro compreender isso de um ponto de vista mais amplo para mim e, de um lugar de calma interior, busco ver o que posso fazer para contribuir com estas mudanças.
Não posso dizer que estou vivenciando 100% esta nova forma de ser. Para quem estava tão acostumado com uma maneira de ser no mundo, é um desafio encontrar novas possibilidades de fazer a “mesma coisa” de um lugar diferente. Parece que do lugar dual da minha mente só existia duas possibilidades de lidar com esse estado caótico e contraditório no qual vejo a sociedade: ou eu brigava com tudo e com todos, doendo em quem doesse, querendo derrubar toda a estrutura que está aí, para poder reconstruir em cima dos escombros; ou me sentia igual a todos que criticava, sendo meio alienado, hipócrita, acomodado, individualista e, em última instância, alimentando o status quo, por me beneficiar dele e não contribuindo para mudar nada. Bem o raciocínio da mente: ou isso ou aquilo. Percebo que existem outras formas...rs 
Estou neste caminho de manter o meu interesse, meu foco e a minha energia em querer também mudar as coisas que estão à minha volta, mas para isso eu tenho que começar encontrando um lugar de mudança dentro de mim mesmo.
Neste momento entendo que no meu processo de querer mudar as coisas, a energia de separação com os outros através das críticas e julgamentos não estava me ajudando a ser mais efetivo no que eu queria. Talvez para outras pessoas seja bastante diferente. Não quero colocar que não seja importante existirem pessoas que atuem como eu estava agindo, ou até mais radical ainda. Sei que aquela forma não estava me fazendo bem. Talvez para algumas pessoas tudo isso que eu sentia como um peso sirva de fato como um motor para a transformação. Parecia ser assim comigo, mas estou em busca de outras formas. Sinto que posso abrandar alguns sentimentos dentro de mim por confiar que não corro mais o risco de me acomodar com o estado atual das coisas. Tenho certeza que vou continuar buscando formas de contribuir e trabalhar pelas coisas que acredito.
Queria ainda agradecer a todos com quem conversei, convivi, discuti, trabalhei e por aí vai. Neste caminho de encontrar o meu lugar foram muito importante as trocas e sei que elas vão ser ainda mais no futuro, só que desse lugar diferente aí que eu falei.
O desafio agora é encontrar que nova forma é essa. Sinto que este post é como se fosse um fechamento de um ciclo para mim. Mas sei que tenho energia e motivação suficiente para encontrar este novo Guilherme, mais em paz consigo, e consequentemente, com mais luz para levar para todos os lugares onde eu for.
Quando eu coloquei no facebook a minha última postagem no ano passado, uma psicóloga e amiga comentou algo que ficou ressoando dentro de mim, mas que eu ainda não conseguia vivenciar o que ela estava me trazendo. Fecho esse post citando-a como um resumo do que eu quis trazer aqui. Muito obrigado, Soninha.
Vou indo agora.
Abraços pra tod@s

ps: Eu poderia falar um pouco mais sobre o que mudou dentro de mim, mas não quis fazer algo muito explicado não...rs... Será que escrever menos é mais uma mudança??? rs
.

Querido Guilherme, sinto-me profundamente tocada com o seu relato/desabafo. Num outro momento, seu relato pessoal levou-me a me centrar em você. Neste momento ele levou-me a centrar-me em mim mesma. Eu não posso e não quero servir de referência para você, nem para ninguém. Quero que saibas o quanto admiro sua força, sua coragem, sua busca e a sua consciência. A agudeza de sua consciência pode conduzi-lo, inevitavelmente, ao sofrimento. Na minha vida (e talvez esta experiência não te ajude) eu aprendi que me fixar na dor, na tristeza e na revolta me enfraquecem. Eu consigo ser efetiva na minha ação, seja ela qual for, e eu já me vi mudando muitos contextos adversos, quanto eu me foco na minha força interior, na Centelha Divina que habita em mim. Um abraço apertado para você e outro para Isabel. Sonia Gusmão

(OM) "Depurando o Veneno"?

O Mundo aos Olhos de um Misantropo
.
17.09.2012
.
Estive participando do XVII ENACP - Encontro Nordestino da Abordagem Centrada na Pessoa – durante a semana passada e tive uma experiência muito significativa, a qual queria partilhar. Logicamente que esta é a minha vivência e minha percepção do que se passou em mim e nos outros. Outros participantes podem ver de maneira distinta.
 Eis que estou no auge da minha crise em relação às classes média e alta e vivencio uma situação onde fico cerca de 05 dias com pessoas que se enquadram neste perfil, convivendo manhã, tarde, noite e madrugadas. Convivi com pessoas muito especiais criando, estabelecendo e reforçando vínculos profundos com estas. Talvez seja pertinente ressaltar o local do encontro: uma pousada bem aconchegante, exatamente na beira da praia, com comida farta, etc. Condições estruturais e também relacionais para que o encontro acontecesse.
Eis que vou me sentindo tão bem de reencontrar e conhecer as pessoas, até o ponto em que a misantropia me invade e começo a olhar tudo aquilo, que tanto me alimenta, de um ponto de vista mais crítico e mais ácido. Minha indignação e revolta passa a ficar competindo com todos os afetos “positivos” que eu estava sentindo.
Começo a pensar no meu trabalho, na comunidade, nas crianças e adolescentes que, possivelmente, não vão passar por uma experiência tão boa, tal qual estava vivendo. Não consigo me sentir tão especial diante da vida a ponto de não achar estranho, não achar que existe alguma coisa muito errada no fato de que experiências tão significativas estejam tão más distribuídas entre pessoas de diferentes “níveis” sociais.
O conflito vai ganhando força dentro de mim e a tendência a expressá-lo vai sendo ainda mais reforçada pelo clima facilitador do encontro. A confiança, mesmo que com certo receio, de que estava num ambiente onde seria escutado me fazia querer questionar a própria experiência de estar participando deste encontro e como todo mundo experienciava isto. Mas, ao mesmo tempo, fiquei um bom tempo em dúvida se queria me colocar, pois sempre sinto que em mim a revolta ganha proporções a tal ponto, que vira agressividade e acidez para com aqueles que sei fazerem parte deste lado opressor da moeda. A minha indignação vai depender de acordo com os argumentos e o tom da discussão em si. Como não sabia qual o rumo que essa fala iria tomar, fiquei me segurando.
Enfim, no último dia do encontro tive uma vontade a mais de me expressar e passei a colocar o quanto aqueles dias estavam, por um lado, sendo inibidores destas minhas reflexões e críticas. Porém, por outro lado, também estavam me dando uma leveza em relação aos sentimentos pesados que carrego e alimento comigo quando estou nos momentos intensos de revolta e críticas. Foi muito importante passar alguns dias com pessoas queridas e que considero muito especiais.
Por que estou escrevendo sobre isso?
Porque no meio de todas as coisas que já senti e ainda sinto a partir deste recorte de classe social, minha crítica tem me deixado meio intolerante a ficar muito tempo, convivendo socialmente, conversando sobre coisas mais superficiais, etc. Esta experiência, tal como falei lá para as pessoas, foi muito importante para dar uma acalmada nos meus sentimentos. Eu me via muito revoltado com as contradições e tinha uma postura de generalizar tudo sobre todos. Lá pude ficar mais em contato e me lembrar de que tem pessoas maravilhosas, vivendo a sua vida como podem, como foram ensinadas, a partir das experiências que a vida proporcionou e que estão buscando viver o melhor que podem – seja por alienação, por alheamento, escolha, vontade de não querer entrar em conflito, ter crises de consciência ou algo mais. Pude ver que, por mais que algumas pessoas não estejam próximas ou empenhadas em trabalhar mais pelas questões sociais, estão sendo importantes e fazendo algo de humanamente útil em outros espaços.
Ao falar desta minha experiência no encontro, inevitavelmente, meus questionamentos vieram à tona e, como eu já esperava, o grupo pôde me acolher de forma significativa. Não só me acolheram, como também me incentivaram a falar um pouco mais da minha experiência; a tornar mais claro de que lugar eu estava falando; a compartilhar mais das minha inquietações; mostraram-me que essa fala crítica e indignada poderia servir para fazer com que outras pessoas que estão mais distantes pudessem se aproximar de outras realidades, etc. Senti-me muito bem e com muita vontade de continuar fazendo e talvez aprimorar o que já tenho feito tão naturalmente e por um imperativo existencial: colocar para fora todo o “veneno” que fica em mim ao passar por tantas coisas.
Porém, outras falas também me tocaram, no sentido de questionar se precisava sair com todo esse “veneno” mesmo. Se para manter-me firme e reto neste meu imperativo de sair desabafando sobre as injustiças que vejo na vida, teria de ser de modo tão amargo.  Lembro que usei a expressão de que “estava com a minha arma apontada para a classe média e alta” e logo para mim mesmo. No encontro fui questionado se teria que estar “armado” para poder continuar fazendo o que penso em fazer.
Confesso que para mim é difícil pensar em coisas tão absurdas, “desumanas”, gritantemente desiguais e, ainda assim, não expressar isto de forma mais inflamada, revoltada e mais armada mesmo. Mas, tanto as falas das pessoas, como a própria experiência relatada na primeira metade do post, me deixaram um pouco mais brando. Fiquei pensando em como posso fazer para ir além de um desabafo, de um despejar críticas em cima das pessoas, na tentativa de facilitar a reflexão e a construção de algo mais coletivo mesmo.  
Ainda não sei responder ao certo. Volto ao meu trabalho e ouço histórias que me remetem a sair deste lugar mais calmo. É muito difícil conviver com tantas histórias intragáveis e indigestas. Bate um sentimento de desesperança, como se eu não conseguisse acreditar em perspectivas melhores.
Parece que vou aprendendo como equilibrar mais estas coisas em mim, não só para facilitar o outro, mas para também encontrar um lugar de mais acolhimento de mim mesmo: convivendo com todas as culpa, falta, revolta, mágoa, tristeza, bem como com a alegria, encontro, abundância, perdão, fé, esperança, etc.
Volto deste encontro com mais certeza de que tenho que compartilhar aos quatro ventos como vivencio e vejo este mundo. Porém, venho com um pouco mais de disponibilidade a pensar como encontrar uma forma melhor de convidar o outro a compor comigo esta possibilidade de mudança.
Coincidentemente ou não, volto às músicas que tanto me inspiram a pensar sobre a vida. Acho que o Luiz Carlos da Vila conseguiu se colocar de maneira bem mais bonita sobre o que eu tenho falado.
Salve Luiz Carlos da Vila! 






Diamante
(Luiz Carlos da Vila)

Queria que você saísse
Dessa letargia e sentisse
Que existe algo aí pelo ar

Que tentasse enxergar mais longe
Que lesse um livro aonde
Pudesse aprender algo mais

Você deve ir lá na rua
Da vida do mundo e na rua
Sair desse “Ouvi falar”

E ver a verdade tão clara
Que a paz e o amor não é para
A gente somente sonhar

Nós temos que ter voz ativa
Só não deve ser tão altiva
Pra ninguém se constranger

A vida é um diamante
Que fica ou não mais brilhante
Depende do nosso viver

(OM) Samba Enquanto Disparador de Reflexões

O Mundo aos Olhos de um Misantropo
.
25.08.2012




Ao citar o samba cantado por Jovelina Pérola Negra no post anterior, fiquei com vontade de colocar mais sambas que são importantes para mim por propiciarem algo a mais do que o prazer de escutar uma boa música. Gosto de alguns sambas que trazem na letra um convite a algumas reflexões. Acho que vou colocar alguns deles por aqui.
Segue abaixo duas músicas. A primeira se enquadra mais nesse convite à reflexão, mas a segunda também é muito legal. Logo seguem as letras das duas. Não sei ao certo se a segunda é da composição do Candeia, mas é ele quem canta.
.
.
.
Ouro Desça do Seu Trono
(Paulo da Portela)

Ouro desça do seu trono
Venha ver o abandono
De milhões de almas aflitas, como gritam
Sua majestade, a prata
Mãe ingrata, indiferente e fria
Sorri da nossa agonia

Diamante, safira e rubi
São pedras Valiosas
Mas eu não troco por ti
Porque és mais preciosa
De tanto ver o poder
Prevalecer na mão do mal
O homem deixa se vender
A honra pelo vil metal

Nessa terra sem paz com tanta guerra
A hipocrisia se venera
O dinheiro é quem impera
Sinto minha alma tristonha
De tanto ver falsidade
E muitos já sentem vergonha
Do amor e honestidade
.
.
.

Mil Réis

Hoje tu voltas aqui
Com o semblante a sorrir
Esperando que eu te receba e te dê
Muitos beijos de amor
Esquecendo afinal o que entre nós se passou
Foi você quem errou
Te ajoelhas ao meus pés
Mas não vales mil réis
Te conheço, afinal
Não mereço perder 
Tantos anos da vida
Tentarei te esquecer, perdida.

Perdida porque não honraste um homem
Manchaste o meu nome e tudo quanto de ofertei
Jogaste fora como uma moeda sem valor, um grande amor
Quem me encontrou, me valorizou

(OM) Promoção: Vidas a Preço de Bananas!!!

O Mundo aos Olhos de um Misantropo
.
24.08.2012
Este post remete a um assunto que me incomoda há muito tempo e vez ou outra aparece novamente no meu cotidiano. Percebo que meus posts estão girando em torno de temas que se relacionam. Acho legal isso porque um vai complementando o outro e por aí vai.
Antes de tudo, queria advertir que este post pode parecer agressivo e dar a entender que eu acho errado lutar por certas coisas. Porém, penso que a “luta” tem que ser maior do que a que está sendo feita.
Outra característica do post é a generalização. Como se o que exponho acontecesse da mesma maneira para todas as pessoas, independente da classe social a qual me refiro. Sei que muitas coisas não são tão simples assim, mas estou inclinado a me expressar desta forma. Aproveitem o que der para aproveitar (se é que existe algo...rs), para SI ou para os OUTROS...
Enfim, vamos lá.

Pergunta simples: Quanto vale a vida de uma pessoa?
Resposta perversamente mais simples: Depende da classe social...

Coloco VIDA por achar que se trata de algo mais geral, mas poderia perguntar várias outras coisas: morte, sofrimento, intimidade, inocência, sexualidade, sonhos, futuro, esperanças, tristezas, decepções, frustrações, realizações, etc.
Ainda me surpreende a discrepância existente em nossa sociedade quando se trata das vidas de pessoas de classe sociais diferentes. Interessante como conseguimos ter reações totalmente diferentes quando diante "das mesmas coisas", acontecendo com pessoas diferentes. Não veria problema em reações diferentes, se estas não tivessem tanta influência deste valor social questionado acima.
Isso fica muito explícito em alguns eventos sociais mais dramáticos, havendo uma grande sensibilização por parte de todos para a "vida que vale a pena ser vivida".
Por que não temos a mesma capacidade de indignação diante de tragédias que se abatem com pessoas de camada popular? O que me gera certo estranhamento é que, muitas vezes, quando se existe uma revolta por alguma coisa que aconteceu com alguém famoso, ou com um poder aquisitivo significativo, os discursos giram em torno de uma moralidade, valores e da importância da VIDA, como se fosse a vida de qualquer pessoa. Acho que seria mais honesto que pudéssemos lembrar de como nosso afeto, interesse, mobilização e revolta tendem a ser direcionados a partir deste recorte de classe social também. O valor das pessoas vai depender se ela participa do seleto grupo a quem damos o luxo de incluir na categoria de “NÓS”.
Passo a lembrar do caso da menina Isabella Nardoni e toda a repercussão gerada no país diante deste drama. Lembro-me que não me sentia tão sensibilizado, como a maioria das pessoas. Não porque o caso em si não fosse digno de reflexão, revolta, etc., mas porque eu não conseguia deixar de pensar em tantos outros contextos em que não se fazia o menor alarde. Fiquei pensando quantas atrocidades acontecem neste mundo afora (lembro-me do contato que tenho com pessoas mais desfavorecidas) e sempre sinto algo que soa meio contraditório – em alguns casos, cheira a hipocrisia mesmo – quando vejo toda a mobilização das pessoas.
Importante frisar que não acho que temos que banalizar a violência que acontece seja lá com quem for. Apenas tento reforçar o “seja lá com quem for”. Acredito que se tem que lutar por justiça e punir quem faz qualquer tipo de violação dos direitos das pessoas. Mas porque não estendemos essa luta para todas as pessoas? Será que a vida de uma criança de classe média-alta vale mais do que a vida de quem vive em comunidade? Crianças que talvez nem tenham tido metade do que a Isabella teve e que muitas vezes morrem sem ter ninguém para pensar no motivo da morte delas. Será que não é preciso pensar nelas também?
Quando eu falo isso, pode parecer meio estranho porque muitas pessoas com quem convivo não têm um contato mais próximo com outras realidades. Logo, é possível questionar sobre como elas poderiam se mobilizar por uma situação “desconhecida”. Mas, a minha dúvida é: por mais que não se tenha um contato direto com pessoas de baixa renda, será que ainda se tem como negar o conhecimento – por mínimo que seja – de violações extremas que acontecem diariamente em vários cantos do país e do mundo?
Lembrei agora de um e-mail que recebi há tempos atrás e que tinha o objetivo de pedir para que as pessoas doassem sangue para um jovem que tinha sofrido um acidente. Este e-mail vinha acompanhado de uma foto e com um texto que sensibilizava as pessoas. Para mim, foi interessante observar que neste texto tinha claramente que o jovem era advogado e empresário. Detalhe insignificante e que provavelmente deve corresponder à realidade dos fatos. Mas não deixei de pensar: será que é mais fácil para as pessoas se mobilizarem quando alguém menciona estas “qualidades”? Provavelmente quem redigiu o texto não tenha pensado por este ponto de vista, mas mesmo assim fiquei me questionando. Outro ponto importante era o quanto o jovem parecia se enquadrar dentro de um padrão de beleza idealizado pela maior parte da sociedade. Pronto, parece que estou culpando o cara de ter uma boa carreira profissional e ter uma boa aparência. Não, não se trata disso e muito menos de achar que quem fez o e-mail ou as pessoas que mandaram para tantas outras estão erradas em fazer este tipo de ação para ajudar uma pessoa que está precisando. Provavelmente eu poderia fazer algo parecido, caso fosse alguém importante para mim. Mas é interessante ver a reação das pessoas diante de uma situação na qual se trata de outra pessoa que encarna um ideal tão intensamente propagado.
Imaginei o mesmo e-mail com um texto do tipo: Zezinho da Carroça, catador de reciclável e morador da comunidade QUALQUER UMA, sofreu acidente... Este e-mail acompanhado por uma foto de uma pessoa que não se enquadre no mórbido padrão de beleza atual. Tenho a forte impressão de que não se teria o mesmo impacto. Inclusive no e-mail do advogado acima, lembro-me de ter uma resposta de uma mulher que dizia algo do tipo: “uma pessoa tão bonita não merece morrer desse jeito!”, onde algumas pessoas manifestaram reações semelhantes. Volta à pergunta: Quanto vale a vida de uma pessoa? Parece que se ela não for bonita, vale menos...
Sinto uma dificuldade enorme em pensar nestes critérios que pudessem fazer uma avaliação de quem vale mais ou menos e que dessem conta de toda complexidade da nossa vida social. Ainda acho que, apesar de toda coisificação, mercantilização e descartabilidade das relações, o ser humano não é um objeto que deve ser avaliado em sua condição de ter direito à vida.
Essa situação é tão bizarra que não são todos que estão disponíveis a assumir o quanto guiam sua vida social a partir desta lógica dos ideais. Porém, não é porque existem práticas sociais veladas, que não é possível falar de prejuízos a partir delas.
Na minha prática profissional já tive contato com adolescentes que engravidaram muito cedo e esta proximidade gerou muitas reflexões e inquietações. Acho que poucas pessoas conseguem se colocar no lugar de uma adolescente que está sofrendo todo esse impacto do apelo sexual que existe em nossa sociedade; que muitas vezes não tem acesso a uma vida escolar que possibilite uma maior reflexão do contexto no qual ela está inserida; que, em muitos casos, não tem uma relação afetiva com um familiar dentro de casa que gere uma aproximação para tirar dúvidas sobre qualquer assunto, inclusive sobre a sexualidade; que não tem acesso a outros direitos fundamentais garantidos a todos, tais como saúde, lazer, etc.; que sofre toda uma pressão social, inclusive dos seus colegas também adolescentes que, atualmente, têm exigido que todos iniciem sua vida sexual cada vez mais cedo.
Parece difícil imaginar o quanto esta situação pode mudar a vida desta adolescente. Mesmo correndo o risco de parecer generalista em relação às conseqüências, algumas coisas me vêm à mente: o quanto que ela não se sente tendo escolhido gestar aquele bebê; o quanto, tal qual “Vida Maria” (http://www.youtube.com/watch?v=6-1CjDCmEiM, a sua gravidez precoce é um acontecimento geracional, que se arrasta por vidas a fio; o quanto ela já é socialmente tratada como uma adulta sem ainda ter desenvolvido uma maturidade psico-afetiva, social e, em alguns casos, até física, para gerenciar aquela situação; o quanto essa gravidez pode dificultar que ela permaneça nos estudos ou almeje uma vida diferente da que está tão acostumada a reconhecer ao redor; a falta de sentido expressa no rosto, onde parece que ainda não caiu a ficha, como se fosse: “eu apenas tava curtindo a vida como todo mundo faz e agora tenho que lidar com essa responsabilidade?”. Interessante destacar que, em um dos casos que tive contato, a adolescente não tinha dado nome ao seu filho, mesmo aos 08 meses de gravidez. O sentimento da família era algo mais ou menos assim: “deus mandou, né?! Fazer o que? Vamos tentar cuidar...”
Mas imaginei uma situação onde uma adolescente famosa (atriz, filha de cantor ou apresentador de tevê, modelos, etc.) tivesse tido um “acidente de percurso” e aparecesse grávida. Parece que eu já vejo, dependendo da visibilidade dada pelos meios de comunicação, a solidariedade que a maior parte da sociedade teria com essa gravidez. Pessoas exaltando o quanto essa gravidez pode ser boa; mandando recados e quem sabe até dando dicas de como ser uma boa mãe e por aí vai (estou meio enjoado de ficar exemplificando tudo que estou falando...rs)
Não acho tão fácil que isso acontecesse com alguém de classe popular. Não vejo as pessoas se importando com o sofrimento desta parte da população. Quando algum famoso sofre algum acidente, doença grave ou coisa do tipo, o país inteiro comenta, se compadece e torce junto com a família “digna da nossa torcida”. Parece que não paramos para pensar que quase tudo de ruim que acontece com classe média-alta, também acontece, muitas vez num grau mais elevado, com tantas outras pessoas. Mas elas não se enquadram nos ideais.
Interessante destacar que esses ideais são construídos socialmente, mas que têm como grande fonte de manutenção – e criação de novos ideais – a mídia, as empresas responsáveis pelo consumo e por aí vai. Geralmente as pessoas que estão por trás (ou será a frente?) desta estrutura midiática são pessoas de classe média e alta. Aí fica uma equação meio perversa que passa algo mais ou menos assim: “todas as pessoas da sociedade só têm valor se tiverem a mesma vida que eu tenho!”. O detalhe interessante é que não se trata de um ideal acessível para todos e que, mesmo assim, se mantém da mesma forma. Quem não se encaixar nesse ideal? “Pior para eles! Que tentem desesperadamente chegar ao mesmo nível que o NOSSO! Para os que não conseguirem, o meu mais profundo e alienante desprezo!”.
Logicamente, que uma boa parte das pessoas não vão se reconhecer neste post. Ninguém gosta de se ver tão indiferente assim. Mas ainda é válido se perguntar o quanto que buscamos fazer de conta que não sabemos que o mundo está explodindo lá fora do meu carro de vidros fechados; da minha casa com muro alto e cheio de grades; do meu condomínio privado que me protege da violência lá fora e assim por diante. Se observarmos o quanto buscamos não ver certas coisas, talvez possamos dar de cara com o quanto estamos contaminados pela indiferença para com OS OUTROS. “Ah, mas são os outros, é? Pensei que você tivesse falando do “nós”...
            Parece que a vida das pessoas de baixa renda só vai ser interessante para os mais abastados, quando for do INTERESSE destes; quando servem para aumentar ainda mais as qualidades dos que muito têm em detrimentos dos “coitados” que nada têm e nada podem, sem potencial algum ou coisas do tipo.
Esta situação me incomoda ainda mais quando percebo o quanto esta mesma desvalorização acaba sendo incorporada por quem também está nas comunidades. Paulo Freire fala do opressor hospedeiro que habita em cada oprimido, mostrando como os valores que são tão propagados ideologicamente pelos opressores afetam quem está na outra ponta do sistema. Opressor hospedeiro que gera uma adesão em massa dos oprimidos a um estilo de vida que aponta para a manutenção da sua própria opressão, fazendo com que exista, comumente, um movimento de - quem se reconhece numa situação de opressão - querer virar o jogo e tornar-se a próxima leva de opressores.
            É desesperador olhar para um grupo de pessoas e ver que uma boa parte só valoriza o que não faz parte do seu dia-a-dia; que não conseguem encontrar um lugar na comunidade para dizer que é bonito e que valha a pena ser mostrado para quem quiser conhecê-la; que não consegue falar sobre coisas boas da comunidade em que vivem, sem a leve sensação de que estão inventando algo que não existe; que sentem na pele que esta desvalorização se estende para as pessoas, onde aquele ser humano parece não ter valor de fato. Parece pairar uma pergunta: “se nós tivéssemos algum valor, com certeza não passaríamos por tantas privações! A culpa, de fato, deve ser nossa, pois lá fora tem muita gente vivendo com muito mais coisas! Ali está o valor do ser humano...”. Parece a brincadeira do eterno retorno. Ao desvalorizarem o próprio lugar, não existe um movimento de mudança, tornando a comunidade um lugar que de fato não se pode gostar e, assim, se fecha um ciclo nefasto que se estende gerando gerações e gerações de “desvalidos”. Não por não terem potencial, mas por ser importante para a manutenção do sistema que eles continuem em seu lugar. Tal como errantes expulsos de um paraíso e que desejam o tempo todo retornar para aquela paz. O pior é que muitos deles não tiveram nenhum contato com uma realidade diferente da deles, a não ser por toda "sorte" de imagens e mensagens que chegam através das novelas, filmes, músicas, etc. Passam a vida tal qual cachorro diante daquelas máquinas de galetos, olhando as mesmas imagens e encantados com aquele mundo maravilhoso que desfila aos seus olhos (Isso me faz lembrar da música "SONHO JUVENIL" cantada por Jovelina Pérola Negra - http://www.youtube.com/watch?v=HI-C8wtIMV4). Situação alienante que não consegue estimular a uma reflexão de como se conseguir chegar nesse lugar, gerando uma grande quantidade de adolescentes que desejam ser médicos, advogados, juízes, promotores, artistas, etc. (vidas que são dignas de serem sonhadas e vividas!). Mas ao serem questionados sobre como fazerem para chegar lá, vivenciam uma lacuna abismal que reforça o quanto parece que só se pode sonhar e não buscar de fato o que se sonha.
Parece não haver uma maior problematização para estas questões por uma naturalização das pessoas que moram em comunidades de baixa renda. Parece que nada mais comum de ver adolescentes grávidas; adolescentes envolvidos com o tráfico; morrendo por qualquer besteira; sendo desrespeitado pela polícia ou outros aparatos institucionais; “bêbados, drogados, viciados”; escutando “músicas que não prestam”; famílias desestruturadas; pessoas sem educação e, logo, sem futuro, etc. Diante de tanta naturalização, parece não gerar tanto impacto qualquer sorte de desgraças que aconteçam a estes quase-não-humanos (de tão distante que colocamos eles).
Já quando acontece com alguma “pessoa de bem”, que tragédia!! Vamos todos nos mobilizar e se condoer com o sofrimento HUMANO. Este tipo de afirmação me lembra um texto escrito por Jurandir Freire, na ocasião da morte de Ayrton Senna, intitulado: Desiguais na vida e na morte - A comoção com o acidente de Senna contrasta com a indiferença diante da morte de cidadãos anônimos(http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/desiguais.html) Segue abaixo um trecho do mesmo:


A morte de Ayrton Senna comoveu o país. O desalento foi geral. Independente do "big carnival" da mídia, todos perguntavam o que Senna significava para milhões de brasileiros. Por que a perda parecia tão grande?  O que ia embora com ele?
Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na estrada por duas horas. Como um "vira-lata", disse um jornalista horrorizado com a cena! Neste meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais. Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada doméstica.
Efeito paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim, tudo que a maioria acha que deu certo e deveria ser a cara do Brasil; do outro, a desqualificação, o anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina. 
O brasileiro quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social "vencedora"; Rosilene era "o que só se é quando nada mais se pode ser", e que, portanto, pode deixar de existir sem fazer falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro. Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as separava, na vida como na morte.


            Volta à pergunta: quanto vale a vida dessas pessoas? Quem está lendo agora consegue olhar para dentro de si e encontrar honestamente algum valor para estas pessoas (que deviam estar incluídas no nosso distinto e luxuoso NÓS!)? Gostaria de sugerir que você pensasse em como garantir que este valor - encontrado dentro de si - possa ser desdobrado para além do bem-estar gerado em você por não se sentir contribuinte da desvalorização dos outros.
            Parece existir algo incoerente em conseguir valorizar todas as pessoas, saber que muitas estão sobrevivendo de maneira praticamente impossível de existência e, mesmo assim, não se buscar fazer nada no cotidiano para mudar isso.
“Busco melhorar a minha própria vida para assim poder melhorar a de todos!”. Argumento válido e me sinto fazendo algo parecido, apesar de estar muito inquieto ainda com a minha própria vida. Só acho que é muito fácil e tentador se perder nesta lógica e passar a só olhar para o próprio umbigo e para “as vidas que têm valor”.
            Depois de tanto blá blá blá, fiquei pensando que parece que só quero vitimizar as pessoas que LÁ estão.  Como se só fossem pobres-coitados que precisam da nossa “solidariedade”, “caridade” e “amparo”. Como se eles também não tivessem potencial, responsabilidade pela própria vida e também não contribuíssem com a sua própria condição. Não se trata disso, mas não vou escrever mais sobre isso agora.


            Apenas acho que, talvez, se estivéssemos em um contexto diferente do qual vivemos nem faria tanto sentido ficar perguntando: Quanto vale a vida de uma pessoa? Retomo a utopia de Paulo Freire e, mesmo parecendo piegas, acredito que chegaríamos a se aproximar da compreensão de que uma vida não tem preço!