sábado, 9 de junho de 2018

(OM) O Nosso Temido Espelho de Opressores

O Mundo aos Olhos de um Misantropo
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26.07.2012

         Eu acho que estou falando de coisas muito sérias neste blog. Vou, de forma mais lúdica, começar diferente, a partir de uma história. Talvez, eu esteja sendo influenciado pelo projeto social em que trabalho, pois o mesmo tem oficinas de contação de histórias e também tenho acompanhando de perto pessoas que estão fazendo formação de contadores. Enfim, vamos começar de forma mais amena e depois seguir para discussão.

Estrelas do Mar
Era uma vez um escritor que morava em uma tranqüila praia, junto de uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do mar para se inspirar, e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao chegar perto, ele reparou que se tratava de um jovem que recolhia estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente de volta ao oceano. 
"Por que está fazendo isso?"- perguntou o escritor.
"Você não vê!? --explicou o jovem-- A maré está baixa e o sol está brilhando”.
“Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na areia”.
O escritor espantou-se.
"Meu jovem, existem milhares de quilômetros de praias por este mundo afora, e centenas de milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai perecer de qualquer forma".
O jovem pegou mais uma estrela na praia, jogou de volta ao oceano e olhou para o escritor.

 “Para essa aqui eu fiz a diferença...”.
Naquela noite o escritor não conseguiu escrever, sequer dormir. Pela manhã, voltou à praia, procurou o jovem, uniu-se a ele e, juntos, começaram a jogar estrelas-do-mar de volta ao oceano.

Sejamos, portanto, mais um dos que querem fazer do mundo um lugar melhor.
Sejamos a diferença!


Já faz um bom tempo que não tenho prazer em leituras como estou tendo ao ler Paulo Freire. Estava até brincando, pretensiosamente, com meus botões: “como ele pensa parecido comigo!”. Aquela sensação agradável de você ver idéias “suas” proferidas por um outro, de maneira até bem mais clara do que no turbilhão de coisas que me afetam (acho que já deu pra perceber que as idéias vêm e vão de maneira meio desorganizada...rs). Confesso que me senti menos sozinho ao ler um pouco do que ele traz na sua fala sobre a sociedade através do recorte de classe social. Veio bem a calhar com este momento em que me sinto – como já ressaltado – com uma vontade cada vez mais crescente de “nos” problematizar enquanto classe também.
Acredito que parte deste meu incômodo vem da minha história de vida mesmo. Acredito que sempre pude me enquadrar dentro do que as pessoas chamam de “classe média” e desde criança convivi com pessoas de “baixa renda” – tendo toda uma relação de identificação com elas – mas, ao mesmo tempo, sempre estive em contato com pessoas de classe média ou “alta” nos colégios em que freqüentava. Esta convivência com grupos diferentes me influenciou a pensar sobre os dois separadamente e, a medida em que fui crescendo, pensar na relação estabelecida entre os dois. Este movimento se perdura até hoje, inclusive academicamente, visto que sempre estive próximo de problemáticas sociais – trabalhei com pessoas em situação de rua, adolescentes em conflito com a lei e com crianças e adolescentes dentro de uma comunidade. Ao mesmo tempo em que minha “formação” profissional vai trilhando por este caminho, meu convívio social continua atrelado às pessoas que possuem uma melhor condição financeira do que o público com que eu trabalho. Logo, me vejo vivenciando muitas coisas no âmbito da minha profissão que me deixam muito crítico comigo mesmo e com as pessoas a minha volta, questionando o tempo todo sobre a implicação do nosso comportamento sobre a vida das pessoas que estão “lá”, do outro lado da cerca. Apesar de achar que a sociedade está organizada de maneira complexa, fragmentada em tantos grupos diferentes, com lutas e bandeiras distintas – o que me leva a pensar que não dá para esgotar as reflexões abordando somente classes sociais – ainda acho bastante fecunda a possibilidade de se fazer contrapontos entre estes “espaços” sociais diferentes.
Volto a Paulo Freire. Ao ler mais sobre sua obra, me identifico com a problematização que ele faz entre opressores e oprimidos e outros aspectos que ele destaca como sendo importante para se pensar a situação de opressão. Ao se fazer essa distinção, fica muito clara a relação de dependência dos dois grupos, o que possibilita a implicação dos mesmos na mudança ou manutenção das coisas tal como estão.
Acho interessante, ao me tomar como exemplo, não ter tido um contato maior com a obra deste autor, inclusive por também ser pernambucano. Penso que isso pode ter sido um mero acaso, apesar de me considerar uma pessoa que gosta de ler, questionar, etc. Fiz um curso de psicologia sem ler nenhum texto dele, assim como estou fazendo uma pós-graduação em psicologia social e comunitária, sem ler nenhum texto também (pelo menos na pós, ouvi falar mais sobre a obra). Por que estou falando sobre isso? Ao começar a ler o “Pedagogia do Oprimido”, tive a impressão de que ele “mete o dedo na ferida”; que ele fala claramente sobre alguns aspectos da sociedade que leva, inevitavelmente, a essa implicação que eu falei. Pessoalmente, esta situação não me incomoda, visto que tenho tentado fazer isso diariamente, chegando até a ser repetitivo (as pessoas mais próximas que o digam). Mas fiquei achando que a reflexão freireana deve ser meio indigesta para quem não quer ter “crises de consciência” com a maneira pela qual guia sua vida. Então, correndo o risco de parecer meio paranóico ou adepto de “teorias da conspiração”, me parece que não entrei mais em contato com Paulo Freire porque, “coincidentemente”, não é produtivo para o sistema que pessoas leiam de maneira tão clara aspectos que falam das estruturas rígidas de poder, opressores, oprimidos, educação, controle, ideologias, alienação, diálogo, consciência e tantas outras coisas.  Me sinto correndo atrás do prejuízo e querendo discutir mais sobre o que ando lendo. Provavelmente irão aparecer mais referências às obras do autor em questão nestas postagens...rs.
E o título? O que tem a ver tudo isso que estou falando? Nas discussões que eu já fazia antes de ler Paulo Freire, eu problematizava que para se compreender qualquer situação sócio-cultural, o recorte de classe poderia gerar reflexões interessantes. Lembra uma frase de um teórico da Psicologia da Gestalt, a qual não vou lembrar literalmente e nem lembro em que livro li, mas que remetia-se a algo do tipo: fazer “a mesma coisa” em contextos diferentes é fazer coisas diferentes.
Jurandir Freire (outro autor pernambucano... acho que estou meio bairrista...rs) mostra isso claramente, ao questionar que a homossexualidade – tal como se conhece de algum tempo para cá – não pode ser igualada à pederastia que acontecia na Grécia antiga sem correr-se o risco de se perder elementos importantes para se compreender o que, de fato, acontecia. Mudando-se o contexto histórico, social e cultural, a compreensão do sentido de dois homens terem um relacionamento afetivo e/ou sexual muda completamente, pois nenhum fato acontece isolado destas variáveis. Trouxe isso como exemplo, mas como este, existe uma variedade infindável de fenômenos que podem ser enriquecidos ao passar por uma problematização que não naturalize os acontecimentos e os coloque dentro de uma estrutura social. Lendo Paulo Freire e, tal como já dito, trabalhando e convivendo com classes sociais diferentes, esta discussão ficou ainda mais enriquecida e fundamentada. Então, estou com o “faro” ainda mais aguçado em pensar tudo a partir desta ótica de classes. 
E o título? O que tem a ver tudo isso que estou falando? (Não, não é um dejavu...rs). Indo mais direto ao ponto (se é que consigo...rs). Ao trabalhar com as demandas sociais que afetam nosso cotidiano atualmente – onde a maioria das intervenções acontece com as pessoas “menos favorecidas” – me deparo com uma pergunta sempre recorrente: “E nós, classe média e alta, o que temos a ver com isso? Qual a minha parcela, consciente ou não, para aquilo que existe enquanto um problema dos ‘outros’?”. Este tipo de questionamento gera muito incômodo para algumas pessoas que não querem “perder” seu tempo tentando se implicar um pouco mais sobre algo que elas também dizem que se preocupam. Ao se trazer o recorte feito por Paulo Freire, fica a pergunta quase estranha de fazer: “O que é que os opressores têm a ver com os oprimidos?” Inclusive é estranho perguntar isso para pessoas que trabalham com estas temáticas sociais, mas ao mesmo tempo não parecem querer ir mais a fundo nesta direção.
Lembro que durante uma época da graduação eu estava querendo discutir o que nós da classe média e alta, tínhamos a ver com os atos infracionais de roubos e furtos cometidos por adolescentes. Eu fundamentava esta discussão trazendo à tona a questão do consumismo exacerbado do momento em que vivemos e que isto era um ideal sustentado e buscado desesperadamente pelas classes média e alta. Para minha surpresa, ao discutir sobre a nossa implicação nesta temática com profissionais que trabalhavam com adolescentes, encontrei respostas bem reativas ao situar o problema desta perspectiva: “como fica o nosso papel – enquanto profissionais que sentem na pele, diariamente, o quanto a busca pelo consumo incentiva adolescentes a cometerem atos infracionais – e ao mesmo tempo mantemos bastante vivo esse ideal de consumo na nossa vida pessoal?”.
 Ainda sinto certa perplexidade das pessoas ao continuar fazendo estas perguntas, em outros contextos e com outras temáticas. A pergunta que não quer calar é: “como acho ser possível trabalhar com os oprimidos, sem ME trabalhar no lugar de opressor?”. E esta pergunta não se restringe somente à minha condição de “estar fazendo a minha parte”, trabalhando com o público oprimido, ou falando sobre as teorias que ajudam a promover reflexões sobre isso, etc. Se eu consigo entender que algumas variáveis sócio-culturais interferem diretamente nas problemáticas sociais e que eu estou, pessoalmente e no meu cotidiano, imerso dentro deste contexto, há de se problematizar a vida fora do ambiente de trabalho também. Há de se perguntar como estou querendo fomentar uma reflexão que ajude as pessoas a refletirem melhor sobre as suas vidas, sem refletir melhor como estas questões estão na minha vida particular. Apesar de reconhecer a importância dos vários projetos sociais que estão trabalhando efetivamente com as “mazelas” geradas dentro deste contexto opressor e adoecedor, penso que é preciso que se problematize o contexto para, talvez, diminuir o excesso de demanda para os trabalhos psicossociais. E isto com certeza aponta para se pensar questões sócio-culturais, tais como consumismo, sexualização da sociedade, culto ao corpo, uso de drogas, questões de gênero, etc. Praticamente todas as pessoas estão imersas dentro dos aspectos citados acima, remando contra ou a favor da maré (deve ter alguma postura intermediária, mas não estou conseguindo visualizar dentro desta metáfora da maré...rs). Mas todos estão expostos a estes estímulos e, talvez, seja necessária uma tomada de postura para que se possa construir ideais e valores coletivos que sejam menos adoecedores dos que estão tão em voga atualmente.
É interessante o quanto não é possível dissociar os aspectos macros e micros de uma mudança deste tipo, visto que, ao mesmo tempo em que estou advogando que é necessário que se tente ir além dos públicos geralmente trabalhados – almejando ter intervenções ou questionamentos que atinjam diretamente o contexto social – estou colocando que o desmantelamento deste sistema opressor começa, também, em mim. Cada um que, pessoalmente, vai de encontro ao que está sendo posto dentro de uma ideologia dominante enfraquece-a e possibilita o surgimento de outras formas de se viver, menos opressoras. 
Volto para a história citada no começo do post. Tenho gostado ainda mais desta história a partir destas reflexões expostas acima. Acho que ela serve para pensar sobre as intervenções que fazemos nas instituições e nos projetos sociais que trabalham com o público de baixa-renda, o qual está tão exposto na “beira da praia” a ponto de que muitas “estrelas” já morreram e parecem que muitas ainda hão de morrer, mesmo com muita gente tentando “jogá-las de volta para o mar”. Inclusive acho de uma riqueza profunda esta história tratar de um fenômeno da “natureza”, para que possamos utilizá-la para a presente discussão. Já vi algumas discussões sobre a história e nunca vi ninguém a abordando tal como pensei – espero que mais alguém tenha feito, pois prefiro não ser “o original” em detrimento de ter mais pessoas por aí se preocupando em problematizar a “natureza” das coisas.
Como bom chato que sou, complicador das coisas simples, freireanamente(isso existe? Meu Word não reconheceu...rs), eu me perguntaria: “o que será que fez com que tantas estrelas viessem parar na beira da praia?”. Com certeza, não daria para, somente, sentar, estilo “O Pensador de Rodin”, e me por a matutar sobre o fato. Provavelmente eu faria tal como o personagem da história e tentaria salvar o máximo de estrelas. Porém, a inquietação continuaria lá: “será que foi o aquecimento? Uma onda gigante? Pescadores? Ou será que existe uma relação de conflito no fundo do mar e algum grupo de outros animais expulsaram todas elas? Talvez os polvos ou tubarões”. Estas perguntas me ajudariam a não tornar o acontecimento somente como um dado da natureza, como algo que aconteceu e que não é preciso questionar-se sobre que forças estavam em questão para que tal fenômeno apareça repentinamente e tome estas proporções insolúveis. Nunca vi esta problematização a partir da história. Sempre o que emerge é o que cada um pode fazer individualmente para ajudar as pessoas que estão precisando, mesmo que não se possa salvar todas.
O que é curioso é que ao se ficar, apenas, na história, acho mais fácil existir uma tendência de não polemizar os motivos que levaram a tal situação e se pensar somente em remediá-la. Mas quando penso na sociedade a partir dela, é estranho que se haja a mesma naturalização dos fatos. Paulo Freire aponta para como a nossa educação não nos ajuda a problematizar o mundo. Devido a naturalização das coisas, não pensamos que alguém, ou “alguéns” (meu Word não reconhece nada...rs)  tinha que pegar um equipamento de mergulho e descer ao fundo do mar para investigar o que estava acontecendo para, quem sabe, evitar que esta catástrofe voltasse a acontecer. Mas se mantendo na história e, ao mesmo tempo, pensando sobre o assunto geral do post, me veio um possível motivo do porquê que “o alguém ali” não gostaria de descer para encontrar o tal motivo:
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Passo a visualizar a imagem do nosso grande herói descendo com muito sacrifício, com todo seu equipamento, suas perguntas, inquietações e sua imensa vontade de ajudar “AQUELAS” pobre estrelas-do-mar. Intuitivamente ele começa a nadar rumo ao que parece ter gerado aquela tragédia e vai se aproximando cada vez mais para este lugar. Ele tem certeza que é ali que se encontra a resposta de tudo e no ápice da sua expectativa, da forma mais decepcionante possível, ele se depara com o inesperado: encontra-se diante de um lindo e grandioso espelho refletindo sua própria imagem...
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Será que dá para imaginar o caminho de volta para a beira da praia? Quais serão os sentimentos confusos que se abatem sobre o tão bem intencionado protagonista desta última parte deste drama? Ainda de maneira confusa, parece estranha a idéia de que ele possa ter se visto no lugar de quem ocasionou aquilo que, justamente, ele achava um absurdo, uma tragédia e que estava tão empenhado em combater.
Volto para a realidade e acredito que pode parecer radical. Já coloquei no início do post que não dá para esgotar a discussão de todas as demandas sociais a partir do recorte de classe. Porém, acredito que tememos olhar para este espelho. Por mais que discordemos dos efeitos negativos deste “imenso mar” – que encontra-se predatoriamente mal distribuído e fazendo com que alguns “animais” (e muitas pessoas os vêem como animais mesmo, no sentido pejorativo do termo) não possam ter o mesmo direito que outros têm – não queremos reconhecer que fazemos parte deste sistema e contribuímos com a manutenção do mesmo. (escrevendo este parágrafo, lembrei-me do filme “A Origem” agora, sonhos que estão dentro de outros sonhos...rs)
Ainda tenho outras coisas a postar sobre esta temática, mas devido à história narrada este post ficou o maior de todos.
Acho que estou sem moral para prometer que vou diminuir...rs.
Então fica para os próximos...

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