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24.08.2012
Este post remete a um assunto que me incomoda há muito tempo e vez ou outra aparece novamente no meu cotidiano. Percebo que meus posts estão girando em torno de temas que se relacionam. Acho legal isso porque um vai complementando o outro e por aí vai.
Antes de tudo, queria advertir que este post pode parecer agressivo e dar a entender que eu acho errado lutar por certas coisas. Porém, penso que a “luta” tem que ser maior do que a que está sendo feita.
Outra característica do post é a generalização. Como se o que exponho acontecesse da mesma maneira para todas as pessoas, independente da classe social a qual me refiro. Sei que muitas coisas não são tão simples assim, mas estou inclinado a me expressar desta forma. Aproveitem o que der para aproveitar (se é que existe algo...rs), para SI ou para os OUTROS...
Enfim, vamos lá.
Pergunta simples: Quanto vale a vida de uma pessoa?
Resposta perversamente mais simples: Depende da classe social...
Coloco VIDA por achar que se trata de algo mais geral, mas poderia perguntar várias outras coisas: morte, sofrimento, intimidade, inocência, sexualidade, sonhos, futuro, esperanças, tristezas, decepções, frustrações, realizações, etc.
Ainda me surpreende a discrepância existente em nossa sociedade quando se trata das vidas de pessoas de classe sociais diferentes. Interessante como conseguimos ter reações totalmente diferentes quando diante "das mesmas coisas", acontecendo com pessoas diferentes. Não veria problema em reações diferentes, se estas não tivessem tanta influência deste valor social questionado acima.
Isso fica muito explícito em alguns eventos sociais mais dramáticos, havendo uma grande sensibilização por parte de todos para a "vida que vale a pena ser vivida".
Por que não temos a mesma capacidade de indignação diante de tragédias que se abatem com pessoas de camada popular? O que me gera certo estranhamento é que, muitas vezes, quando se existe uma revolta por alguma coisa que aconteceu com alguém famoso, ou com um poder aquisitivo significativo, os discursos giram em torno de uma moralidade, valores e da importância da VIDA, como se fosse a vida de qualquer pessoa. Acho que seria mais honesto que pudéssemos lembrar de como nosso afeto, interesse, mobilização e revolta tendem a ser direcionados a partir deste recorte de classe social também. O valor das pessoas vai depender se ela participa do seleto grupo a quem damos o luxo de incluir na categoria de “NÓS”.
Passo a lembrar do caso da menina Isabella Nardoni e toda a repercussão gerada no país diante deste drama. Lembro-me que não me sentia tão sensibilizado, como a maioria das pessoas. Não porque o caso em si não fosse digno de reflexão, revolta, etc., mas porque eu não conseguia deixar de pensar em tantos outros contextos em que não se fazia o menor alarde. Fiquei pensando quantas atrocidades acontecem neste mundo afora (lembro-me do contato que tenho com pessoas mais desfavorecidas) e sempre sinto algo que soa meio contraditório – em alguns casos, cheira a hipocrisia mesmo – quando vejo toda a mobilização das pessoas.
Importante frisar que não acho que temos que banalizar a violência que acontece seja lá com quem for. Apenas tento reforçar o “seja lá com quem for”. Acredito que se tem que lutar por justiça e punir quem faz qualquer tipo de violação dos direitos das pessoas. Mas porque não estendemos essa luta para todas as pessoas? Será que a vida de uma criança de classe média-alta vale mais do que a vida de quem vive em comunidade? Crianças que talvez nem tenham tido metade do que a Isabella teve e que muitas vezes morrem sem ter ninguém para pensar no motivo da morte delas. Será que não é preciso pensar nelas também?
Quando eu falo isso, pode parecer meio estranho porque muitas pessoas com quem convivo não têm um contato mais próximo com outras realidades. Logo, é possível questionar sobre como elas poderiam se mobilizar por uma situação “desconhecida”. Mas, a minha dúvida é: por mais que não se tenha um contato direto com pessoas de baixa renda, será que ainda se tem como negar o conhecimento – por mínimo que seja – de violações extremas que acontecem diariamente em vários cantos do país e do mundo?
Lembrei agora de um e-mail que recebi há tempos atrás e que tinha o objetivo de pedir para que as pessoas doassem sangue para um jovem que tinha sofrido um acidente. Este e-mail vinha acompanhado de uma foto e com um texto que sensibilizava as pessoas. Para mim, foi interessante observar que neste texto tinha claramente que o jovem era advogado e empresário. Detalhe insignificante e que provavelmente deve corresponder à realidade dos fatos. Mas não deixei de pensar: será que é mais fácil para as pessoas se mobilizarem quando alguém menciona estas “qualidades”? Provavelmente quem redigiu o texto não tenha pensado por este ponto de vista, mas mesmo assim fiquei me questionando. Outro ponto importante era o quanto o jovem parecia se enquadrar dentro de um padrão de beleza idealizado pela maior parte da sociedade. Pronto, parece que estou culpando o cara de ter uma boa carreira profissional e ter uma boa aparência. Não, não se trata disso e muito menos de achar que quem fez o e-mail ou as pessoas que mandaram para tantas outras estão erradas em fazer este tipo de ação para ajudar uma pessoa que está precisando. Provavelmente eu poderia fazer algo parecido, caso fosse alguém importante para mim. Mas é interessante ver a reação das pessoas diante de uma situação na qual se trata de outra pessoa que encarna um ideal tão intensamente propagado.
Imaginei o mesmo e-mail com um texto do tipo: Zezinho da Carroça, catador de reciclável e morador da comunidade QUALQUER UMA, sofreu acidente... Este e-mail acompanhado por uma foto de uma pessoa que não se enquadre no mórbido padrão de beleza atual. Tenho a forte impressão de que não se teria o mesmo impacto. Inclusive no e-mail do advogado acima, lembro-me de ter uma resposta de uma mulher que dizia algo do tipo: “uma pessoa tão bonita não merece morrer desse jeito!”, onde algumas pessoas manifestaram reações semelhantes. Volta à pergunta: Quanto vale a vida de uma pessoa? Parece que se ela não for bonita, vale menos...
Sinto uma dificuldade enorme em pensar nestes critérios que pudessem fazer uma avaliação de quem vale mais ou menos e que dessem conta de toda complexidade da nossa vida social. Ainda acho que, apesar de toda coisificação, mercantilização e descartabilidade das relações, o ser humano não é um objeto que deve ser avaliado em sua condição de ter direito à vida.
Essa situação é tão bizarra que não são todos que estão disponíveis a assumir o quanto guiam sua vida social a partir desta lógica dos ideais. Porém, não é porque existem práticas sociais veladas, que não é possível falar de prejuízos a partir delas.
Na minha prática profissional já tive contato com adolescentes que engravidaram muito cedo e esta proximidade gerou muitas reflexões e inquietações. Acho que poucas pessoas conseguem se colocar no lugar de uma adolescente que está sofrendo todo esse impacto do apelo sexual que existe em nossa sociedade; que muitas vezes não tem acesso a uma vida escolar que possibilite uma maior reflexão do contexto no qual ela está inserida; que, em muitos casos, não tem uma relação afetiva com um familiar dentro de casa que gere uma aproximação para tirar dúvidas sobre qualquer assunto, inclusive sobre a sexualidade; que não tem acesso a outros direitos fundamentais garantidos a todos, tais como saúde, lazer, etc.; que sofre toda uma pressão social, inclusive dos seus colegas também adolescentes que, atualmente, têm exigido que todos iniciem sua vida sexual cada vez mais cedo.
Parece difícil imaginar o quanto esta situação pode mudar a vida desta adolescente. Mesmo correndo o risco de parecer generalista em relação às conseqüências, algumas coisas me vêm à mente: o quanto que ela não se sente tendo escolhido gestar aquele bebê; o quanto, tal qual “Vida Maria” (http://www.youtube.com/watch?v=6-1CjDCmEiM) , a sua gravidez precoce é um acontecimento geracional, que se arrasta por vidas a fio; o quanto ela já é socialmente tratada como uma adulta sem ainda ter desenvolvido uma maturidade psico-afetiva, social e, em alguns casos, até física, para gerenciar aquela situação; o quanto essa gravidez pode dificultar que ela permaneça nos estudos ou almeje uma vida diferente da que está tão acostumada a reconhecer ao redor; a falta de sentido expressa no rosto, onde parece que ainda não caiu a ficha, como se fosse: “eu apenas tava curtindo a vida como todo mundo faz e agora tenho que lidar com essa responsabilidade?”. Interessante destacar que, em um dos casos que tive contato, a adolescente não tinha dado nome ao seu filho, mesmo aos 08 meses de gravidez. O sentimento da família era algo mais ou menos assim: “deus mandou, né?! Fazer o que? Vamos tentar cuidar...”
Mas imaginei uma situação onde uma adolescente famosa (atriz, filha de cantor ou apresentador de tevê, modelos, etc.) tivesse tido um “acidente de percurso” e aparecesse grávida. Parece que eu já vejo, dependendo da visibilidade dada pelos meios de comunicação, a solidariedade que a maior parte da sociedade teria com essa gravidez. Pessoas exaltando o quanto essa gravidez pode ser boa; mandando recados e quem sabe até dando dicas de como ser uma boa mãe e por aí vai (estou meio enjoado de ficar exemplificando tudo que estou falando...rs)
Não acho tão fácil que isso acontecesse com alguém de classe popular. Não vejo as pessoas se importando com o sofrimento desta parte da população. Quando algum famoso sofre algum acidente, doença grave ou coisa do tipo, o país inteiro comenta, se compadece e torce junto com a família “digna da nossa torcida”. Parece que não paramos para pensar que quase tudo de ruim que acontece com classe média-alta, também acontece, muitas vez num grau mais elevado, com tantas outras pessoas. Mas elas não se enquadram nos ideais.
Interessante destacar que esses ideais são construídos socialmente, mas que têm como grande fonte de manutenção – e criação de novos ideais – a mídia, as empresas responsáveis pelo consumo e por aí vai. Geralmente as pessoas que estão por trás (ou será a frente?) desta estrutura midiática são pessoas de classe média e alta. Aí fica uma equação meio perversa que passa algo mais ou menos assim: “todas as pessoas da sociedade só têm valor se tiverem a mesma vida que eu tenho!”. O detalhe interessante é que não se trata de um ideal acessível para todos e que, mesmo assim, se mantém da mesma forma. Quem não se encaixar nesse ideal? “Pior para eles! Que tentem desesperadamente chegar ao mesmo nível que o NOSSO! Para os que não conseguirem, o meu mais profundo e alienante desprezo!”.
Logicamente, que uma boa parte das pessoas não vão se reconhecer neste post. Ninguém gosta de se ver tão indiferente assim. Mas ainda é válido se perguntar o quanto que buscamos fazer de conta que não sabemos que o mundo está explodindo lá fora do meu carro de vidros fechados; da minha casa com muro alto e cheio de grades; do meu condomínio privado que me protege da violência lá fora e assim por diante. Se observarmos o quanto buscamos não ver certas coisas, talvez possamos dar de cara com o quanto estamos contaminados pela indiferença para com OS OUTROS. “Ah, mas são os outros, é? Pensei que você tivesse falando do “nós”...
Parece que a vida das pessoas de baixa renda só vai ser interessante para os mais abastados, quando for do INTERESSE destes; quando servem para aumentar ainda mais as qualidades dos que muito têm em detrimentos dos “coitados” que nada têm e nada podem, sem potencial algum ou coisas do tipo.
Esta situação me incomoda ainda mais quando percebo o quanto esta mesma desvalorização acaba sendo incorporada por quem também está nas comunidades. Paulo Freire fala do opressor hospedeiro que habita em cada oprimido, mostrando como os valores que são tão propagados ideologicamente pelos opressores afetam quem está na outra ponta do sistema. Opressor hospedeiro que gera uma adesão em massa dos oprimidos a um estilo de vida que aponta para a manutenção da sua própria opressão, fazendo com que exista, comumente, um movimento de - quem se reconhece numa situação de opressão - querer virar o jogo e tornar-se a próxima leva de opressores.
É desesperador olhar para um grupo de pessoas e ver que uma boa parte só valoriza o que não faz parte do seu dia-a-dia; que não conseguem encontrar um lugar na comunidade para dizer que é bonito e que valha a pena ser mostrado para quem quiser conhecê-la; que não consegue falar sobre coisas boas da comunidade em que vivem, sem a leve sensação de que estão inventando algo que não existe; que sentem na pele que esta desvalorização se estende para as pessoas, onde aquele ser humano parece não ter valor de fato. Parece pairar uma pergunta: “se nós tivéssemos algum valor, com certeza não passaríamos por tantas privações! A culpa, de fato, deve ser nossa, pois lá fora tem muita gente vivendo com muito mais coisas! Ali está o valor do ser humano...”. Parece a brincadeira do eterno retorno. Ao desvalorizarem o próprio lugar, não existe um movimento de mudança, tornando a comunidade um lugar que de fato não se pode gostar e, assim, se fecha um ciclo nefasto que se estende gerando gerações e gerações de “desvalidos”. Não por não terem potencial, mas por ser importante para a manutenção do sistema que eles continuem em seu lugar. Tal como errantes expulsos de um paraíso e que desejam o tempo todo retornar para aquela paz. O pior é que muitos deles não tiveram nenhum contato com uma realidade diferente da deles, a não ser por toda "sorte" de imagens e mensagens que chegam através das novelas, filmes, músicas, etc. Passam a vida tal qual cachorro diante daquelas máquinas de galetos, olhando as mesmas imagens e encantados com aquele mundo maravilhoso que desfila aos seus olhos (Isso me faz lembrar da música "SONHO JUVENIL" cantada por Jovelina Pérola Negra - http://www.youtube.com/watch?v=HI-C8wtIMV4). Situação alienante que não consegue estimular a uma reflexão de como se conseguir chegar nesse lugar, gerando uma grande quantidade de adolescentes que desejam ser médicos, advogados, juízes, promotores, artistas, etc. (vidas que são dignas de serem sonhadas e vividas!). Mas ao serem questionados sobre como fazerem para chegar lá, vivenciam uma lacuna abismal que reforça o quanto parece que só se pode sonhar e não buscar de fato o que se sonha.
Parece não haver uma maior problematização para estas questões por uma naturalização das pessoas que moram em comunidades de baixa renda. Parece que nada mais comum de ver adolescentes grávidas; adolescentes envolvidos com o tráfico; morrendo por qualquer besteira; sendo desrespeitado pela polícia ou outros aparatos institucionais; “bêbados, drogados, viciados”; escutando “músicas que não prestam”; famílias desestruturadas; pessoas sem educação e, logo, sem futuro, etc. Diante de tanta naturalização, parece não gerar tanto impacto qualquer sorte de desgraças que aconteçam a estes quase-não-humanos (de tão distante que colocamos eles).
Já quando acontece com alguma “pessoa de bem”, que tragédia!! Vamos todos nos mobilizar e se condoer com o sofrimento HUMANO. Este tipo de afirmação me lembra um texto escrito por Jurandir Freire, na ocasião da morte de Ayrton Senna, intitulado: Desiguais na vida e na morte - A comoção com o acidente de Senna contrasta com a indiferença diante da morte de cidadãos anônimos(http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/desiguais.html). Segue abaixo um trecho do mesmo:
A morte de Ayrton Senna comoveu o país. O desalento foi geral. Independente do "big carnival" da mídia, todos perguntavam o que Senna significava para milhões de brasileiros. Por que a perda parecia tão grande? O que ia embora com ele?
Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na estrada por duas horas. Como um "vira-lata", disse um jornalista horrorizado com a cena! Neste meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais. Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada doméstica.
Efeito paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim, tudo que a maioria acha que deu certo e deveria ser a cara do Brasil; do outro, a desqualificação, o anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina.
O brasileiro quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social "vencedora"; Rosilene era "o que só se é quando nada mais se pode ser", e que, portanto, pode deixar de existir sem fazer falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro. Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as separava, na vida como na morte.
Volta à pergunta: quanto vale a vida dessas pessoas? Quem está lendo agora consegue olhar para dentro de si e encontrar honestamente algum valor para estas pessoas (que deviam estar incluídas no nosso distinto e luxuoso NÓS!)? Gostaria de sugerir que você pensasse em como garantir que este valor - encontrado dentro de si - possa ser desdobrado para além do bem-estar gerado em você por não se sentir contribuinte da desvalorização dos outros.
Parece existir algo incoerente em conseguir valorizar todas as pessoas, saber que muitas estão sobrevivendo de maneira praticamente impossível de existência e, mesmo assim, não se buscar fazer nada no cotidiano para mudar isso.
“Busco melhorar a minha própria vida para assim poder melhorar a de todos!”. Argumento válido e me sinto fazendo algo parecido, apesar de estar muito inquieto ainda com a minha própria vida. Só acho que é muito fácil e tentador se perder nesta lógica e passar a só olhar para o próprio umbigo e para “as vidas que têm valor”.
Depois de tanto blá blá blá, fiquei pensando que parece que só quero vitimizar as pessoas que LÁ estão. Como se só fossem pobres-coitados que precisam da nossa “solidariedade”, “caridade” e “amparo”. Como se eles também não tivessem potencial, responsabilidade pela própria vida e também não contribuíssem com a sua própria condição. Não se trata disso, mas não vou escrever mais sobre isso agora.
Apenas acho que, talvez, se estivéssemos em um contexto diferente do qual vivemos nem faria tanto sentido ficar perguntando: Quanto vale a vida de uma pessoa? Retomo a utopia de Paulo Freire e, mesmo parecendo piegas, acredito que chegaríamos a se aproximar da compreensão de que uma vida não tem preço!
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