sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Muro do Silêncio é feito de que?


O “Muro do Silêncio” é feito de que?

O objetivo geral do Projeto Revelando-Ser é desconstruir o “muro do silêncio” que existe em torno das pessoas adultas que foram abusadas sexualmente quando eram crianças ou adolescentes.

Como tenho citado sempre, muito teria para ser falado acerca disso, porém vou introduzir alguns elementos que podem ajudar a entender melhor o que compõe esse muro. Importante ressaltar que vou falar de três aspectos de maneira separada, mas é muito importante que se saiba que essas três esferas só estão separadas aqui para, didaticamente, facilitar a compreensão. Na “vida real”, esses aspectos estão contidos um dentro do outro, entrelaçados, um constituindo o outro, reforçando-se mutuamente, o que dificulta ainda mais a saída do isolamento que o muro do silêncio gera na vida de algumas pessoas que foram abusadas sexualmente.

Ao se aprofundar e visualizar a metáfora, me deparo com pessoas diante de um muro bem alto e extenso, cheio de tijolos dificultando a “passagem”, a “comunicação com outras pessoas” e, até mesmo, o “reconhecimento do que existe para além dele mesmo”, o que existem em sua volta. Passo a “escutar” muitos dos relatos que já chegaram até mim sobre como é difícil falar sobre o abusos sexuais sofridos e o isolamento que isso gera em cada pessoa. Eu divido, por ora, esse muro em três camadas, desde a base até o topo, que correspondem a diferentes esferas da vida de quem foi abusado sexualmente há anos, ainda sem saber o que considerar base, meio e topo do muro:

  1. Esfera individual;
  2. Esfera familiar;
  3. Esfera sócio-cultural.

Esfera Individual - Tenho falado um pouco sobre essa camada em textos anteriores: http://portaisdeuniao.blogspot.com/2018/07/tempo-delicadeza-e-profundidade.html ;
Vejo aqui toda a dificuldade que as próprias pessoas que foram abusadas sexualmente têm de entrar em contato com a sua experiência. Em praticamente todos os casos que atendi as sensações que as pessoas experimentam ao lembrarem dos abusos sexuais não são nem um pouco agradáveis. Muitas pessoas passaram por momentos em que parecia que  elas não iriam suportar lidar com aquelas lembranças e as emoções que aparecem diante delas. Algumas pessoas inclusive não lembravam dos eventos abusivos da sua vida. Ou seja, a pessoa pode criar um muro do silêncio em volta da dor, em volta da ferida que ainda está aberta e latente, não conseguindo revelar nem para si mesmo o quanto aquela situação afetou e ainda afeta a sua vida. Muitos sentimentos podem dar suporte para este silêncio: vergonha, culpa, medo, raiva, mágoa, abandono, rejeição, exclusão, traição, sentirem-se sujas, falta de confiança em si e nos outros, etc. Quando o abuso foi cometido por algum familiar muito próximo, esses sentimentos se misturam com tantos outros, o que pode gerar uma confusão, contradição “dentro” da pessoa.

Esfera Familiar - Agora pensemos que a pessoa abusada conseguiu reconhecer / olhar para esta experiência - que parecia estar somente no passado, mas que se apresenta de maneira bem contundente no presente -  mesmo que ainda com muito sofrimento. Logo em seguida, outra camada de silêncio apresenta-se com o poder de abafar aquilo que está emergindo de maneira ainda muito incipiente: os vínculos familiares.

Como minha família reagiria se eu contasse? Quais as consequências disso? Vou prejudicar a minha família? E se eles não acreditarem em mim? Se eles acharem que a culpa é minha?

São tantas questões, tantas possibilidades das coisas “piorarem” para a pessoa que foi abusada que muitas vezes ela não sabe o que fazer com esse segredo. Muitas vezes a saída é continuar em silêncio, sem contar para ninguém. Porém, essa situação pode piorar na medida em que ela entra mais em contato profundo com o conteúdo do abuso, pois, agora, não dá para fazer de conta que nada aconteceu e continua acontecendo dentro dela. A tensão pode aumentar ainda mais e se tornar mais explícita do que quando a pessoa tentava viver a vida sem olhar para isso. Quando o abuso é praticado por um familiar, a própria rede de apoio familiar pode não querer olhar para a violência, porque ela fica fragilizada, dividida, sem saber que lado tomar, o que fazer. Muitas vezes a própria família prefere que as pessoas abusadas continuem em silêncio. “Já silenciou isso por tanto tempo! Por que mexer nisso agora?!”

Lembro agora de uma pessoa atendida por mim  e que me relatou que sempre lembrou da situação do abuso, mas nunca tinha parado para realmente sentir tudo que ele representou na vida dela. O abuso foi cometido por um familiar bem próximo e ela teve que ficar convivendo com o mesmo porque ele morava perto da sua casa. Ao trabalhar este conteúdo na terapia, a pessoa se deu conta de que foi necessário ela não olhar para o abuso sexual ao longo daqueles anos todos para ela poder continuar convivendo com a sua família. Quando a terapia começou a mexer nesse assunto de maneira mais profunda, a pessoa sentiu que quanto mais ela ouvia os seus próprios sentimentos em relação aquele drama, que também era familiar, menos ela conseguia “funcionar bem” dentro da família. Era como se, para ela, conviver com a família implicava em não olhar para o abuso. Mas ele teve que ser olhado e isso implicou em se afastar da família.

A imagem que me vem é de uma festa de família em uma casa bem grande e que quando a pessoa que foi abusada vem chegando, ela tem que deixar do lado de fora da casa uma experiência que para ela é significativa. Uma parte do ser dela tem que ser alienado de si mesma para poder estar com as pessoas que ela ama (muitas vezes incluindo o autor/a do abuso). Mas o preço dessa alienação pode ser caro para a pessoa ao longo da vida e, ao não querer mais sustentar essa cisão de si mesma, a pessoa pode não se sentir conseguindo conviver com aquelas pessoas. Ela pode precisar se isolar e sentir uma solidão que não é tão novidade assim, pois, na verdade, ela sempre se sentiu solitária, de maneira inconsciente, após o abuso que ela nunca compartilhou com ninguém. Essa solidão pode se tornar ainda mais concreta e isso não é fácil.  

Esfera sócio-cultural - O abuso sexual, apesar de parecer ser um evento individual e/ou familiar, acontece dentro de um “tempo e espaço” social e cultural. Não tem como se discutir o abuso sexual, a sua prevalência e ainda mais o muro do silêncio em volta dele, sem situá-lo dentro dos valores, dos discursos, das relações de poder, opressões, do lugar que foi e ainda é dado para a família, crianças, adultos, homens e mulheres, sexualidade, violação de direitos, etc. ao longo dos anos passados. Ainda mais quando estamos situando o foco do projeto em pessoas adultas que foram abusadas sexualmente há 15, 20, 30 ou mais anos.

Atualmente muitas pessoas que passam por alguma situação de violência encontram imensas dificuldades para denunciar essa violência e serem acolhidas nos seus sofrimentos. O nosso contexto socio-cultural ainda tende a negar a importância de eventos violentos que acontecem com determinados grupos da sociedade, fazendo de conta de que eles não existem, e se existirem não são tão sofridos assim. A famosa era do “mimimi” que tanto ocupa falas e discursos nas redes sociais.

Se essa dinâmica acontece atualmente - dentro de um contexto onde a violência é mortal, gritante, alarmante, expressa em números, em imagens de tantos vídeos, e ainda assim é minimizada por essas relações desiguais entre atores sociais diferentes - imaginem o desafio que é falar de uma violência que aconteceu há tanto tempo, muitas vezes sem provas, com lembranças confusas, com pessoas que podem até já terem morrido. Se uma mulher que foi agredida, violentada e morta por algum homem de maneira brutal (como tantas que, infelizmente, chegam ao nosso conhecimento) ainda é julgada, culpabilizada e negada em sua humanidade, qual a mensagem que, implícita ou explicitamente estamos passando para outras pessoas que queiram falar das suas violências do passado. Talvez seja difícil para as pessoas compreenderem que para uma pessoa que demorou anos para falar de um abuso sexual do passado, ser julgada da forma que é comum hoje em dia, pode ser ainda mais violento e desestruturador. Como se ela nunca tivesse o direito de querer sair daquela prisão, como se não tivesse “espaço social” para aquela dor e que ela tem que carregar esse fardo sozinha consigo mesma como fez tão bem ao longo dos anos. A que custo só a própria pessoa sabe!

Ainda bem que estão aparecendo cada vez mais situações nos meios de comunicação que retratam essa situação das pessoas adultas que foram abusadas. Porém, sinto que, enquanto sociedade, ainda não estamos podendo reconhecer o quanto isso aconteceu e ainda acontece. Parece difícil atualizar o conceito de família e reconhecer que em muitos casos ela não é, somente, uma célula social protetora, nutritiva e que promove o crescimento das suas crianças. Ela também pode ser violenta e é importante que possamos lidar com isso para cuidar das pessoas que foram se perdendo ao longo do caminho.

Novamente sinto que muito ainda poderia ser falado...rsrs
Mas fica o convite para que as pessoas que leiam possam perguntar, questionar, debater.
Estamos promovendo encontros regulares para debater sobre esses assuntos.
Mais informações no nosso site www.revelandoser.org.
Que possamos ser agentes de mudança na desconstrução desse muro do silêncio no intuito de criar uma sociedade mais acolhedora e inclusiva para todxs.


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