No Limite do Silêncio
Este título é de um filme muito profundo sobre o abuso sexual e
seus desdobramentos. Estaremos realizando um cine-debate sobre ele no início de
setembro. Ao assistir novamente ao filme, fiquei com este mote no pensamento:
Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Como falei em outro momento, já venho acompanhando
terapeuticamente várias pessoas que foram abusadas sexualmente na infância e
adolescência e que me procuraram para iniciar a psicoterapia. É importante
frisar que, tal como tem descrito em alguns estudos acadêmicos, a demanda do
abuso sexual não era a “demanda principal” que fazia com que estas pessoas me
procurassem. O que aconteceu, em praticamente todos os casos, foi a pessoa vir
com várias demandas diferentes e o abuso sexual aparecer posteriormente como
algo importante para o processo, em alguns casos se tornando até no ponto
principal da terapia.
Vejo essa situação por dois prismas diferentes no momento, um
parecendo mais frequente do que o outro:
1 - A pessoa que foi abusada sexualmente reconhece que o abuso é
algo importante a ser trabalhado, porém, não é fácil para ela tocar nesse
conteúdo, principalmente com uma pessoa que ela não conhece, nunca viu e que
ainda não estabeleceu uma relação de confiança onde ela sinta que pode se abrir
para falar de algo que gera tantos sentimentos contraditórios dentro dela;
2 - A pessoa que foi abusada sexualmente não tem ideia do quanto
aquela situação tem influenciado sua vida. Muitas vezes, a pessoa não lembra
muito bem e, como ela sobreviveu e não fala mais disso, parece não ser
importante tocar nesse assunto (sinto como esta situação mais frequente).
O que aconteceu, em cada processo foi que, a própria terapia - ao
cuidar dos assuntos que estavam mais emergentes no aqui e agora - trouxe à tona
a situação do abuso sexual naturalmente, sem termos que ir atrás dele
intencionalmente, fazendo com que tivéssemos que nos debruçar mais sobre esse
passado.
Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Já tive um cliente que demorou dois anos de processo para falar
sobre o abuso sexual. Quando falo assim, parece até meio estranho, pois tivemos
que re-significar tudo que tinha sido falado até então e, com o decorrer do
processo, ele chegou à conclusão de que estávamos falando do abuso o tempo
todo, porém, sem termos consciência de que todos os conteúdos falados já faziam
parte dos desdobramentos do abuso. Passamos ainda alguns anos trabalhando em
cima dessa "descoberta".
Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Atendi uma cliente que, depois de algum tempo de terapia, também
trouxe a situação do abuso na sua vida. Porém, ela tinha reações físicas muito
fortes ao apenas cogitar falar sobre este assunto na terapia. Foi uma
experiência muito significativa para mim. Ela vinha duas vezes por semana para
a psicoterapia, e demonstrava que queria falar sobre o assunto, porém, ao
começar, a sua vista ficava embaçada ou escurecia, sentia muitos calafrios,
falta de ar, etc. Eu tive que reconhecer que tocar naquele assunto estava para
além da minha disponibilidade enquanto terapeuta, bem como também para além da
sua vontade consciente enquanto cliente. Com o passar do tempo, foi possível
ver estas reações se acalmando mais e pudemos vivenciar momentos de intensa
dor, em que percebemos o que aquelas reações estavam evitando.
Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Estamos realizando os atendimentos psicoterapêuticos às pessoas
que têm procurado o Projeto Revelando-Ser. Algumas destas pessoas vieram para
alguma roda de conversa, ou palestras do projeto. Ao atender esta pessoas, foi
possível perceber uma diferença no que se refere a este Limite do Silêncio. As
pessoas que eu atendi no meu consultório particular, como exemplifiquei
rapidamente acima, me procuraram para falar de outras demandas e, com o tempo,
começaram a falar sobre o abuso sexual. Sinto que durante este tempo foi
possível construir uma relação de confiança, acolhimento e aceitação que foi de
fundamental importância para se adentrar neste terreno tão delicado
posteriormente. Algumas das pessoas que procuraram o projeto e que demonstraram
interesse na psicoterapia chegaram de uma forma diferente. Elas estavam vindo
para um projeto em que o abuso sexual se anunciava desde o momento em que ela
entrava em contato pelo telefone. Ao chegar à minha sala, a pessoa já estava
dizendo que passou por aquilo, sem ter nenhum vínculo maior com aquele que iria
escutar coisas muito profundas e dolorosas da sua vida. É como se aquela ferida
já estivesse totalmente aberta e exposta e percebi que alguns clientes se
sentiam meio que na obrigação de falar sobre o assunto, não somente porque ele
estava muito emergente na sua vida, mas também porque o projeto é sobre este
assunto. Sinto que estas situações podem ter gerado uma dificuldade adicional
para a pessoa conseguir sustentar a sua decisão de ir se revelando aos poucos.
É como se o primeiro atendimento não respeitasse este Limite do Silêncio,
colocando a pessoa em um lugar que exigia mais do que ela estivesse podendo dar
naquele momento. Perceber esta dinâmica nos primeiros atendimentos foi
importante para que eu pudesse verbalizar para os clientes seguintes, no
primeiro atendimento, que não era obrigatório falar do abuso sexual, que eu
estava disponível para estar com eles no que fosse possível falar naquele
momento. Em uma ocasião senti o quanto falar isso para uma cliente no primeiro
atendimento a deixou mais aliviada e mais segura de que não precisaria se expor
obrigatoriamente ou passar por cima de si, dos seus limites, para estar na
relação terapêutica comigo. O que aconteceu em seguida é que o abuso sexual
ainda apareceu nas primeiras sessões, mas com um ritmo que estava sendo mais
cadenciado pelo cliente do que por mim ou pela “Instituição”. Sinto que, mesmo
que deixemos os clientes à vontade para não falar logo sobre o abuso, eles vão
querer trazer isso, afinal de contas, a maioria deles não suporta mais ficar
com esse segredo só para si, já fazem isso há muito tempo. Para mim é muito
mais uma demonstração de respeito, uma demonstração de delicadeza e cuidado com
o tempo, limites e ritmo no processo de revelação de cada um.
Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Sinto que as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na
infância e adolescência criam um certo perímetro de acesso a algumas
experiências que se passam consigo como um mecanismo de sobrevivência
psicológica. Para mim, enquanto terapeuta, cabe honrar esse perímetro,
reconhecendo-o como importante e aceitando que ele precisou estar aí. Porém,
este perímetro, ao mesmo tempo em que protege o cliente de uma possível
desestruturação, também limita, também o mantém prisioneiro dos próprios
sentimentos, podendo se tornar uma experiência tão claustrofóbica que também
coloca em risco a própria sobrevivência deste cliente. Então, junto com a
aceitação desse perímetro, reconheço toda a vida e potencialidade que podem
estar abafadas por este modo de funcionamento rígido. Garantindo a presença das
atitudes facilitadoras (Carl Rogers), posso convidar o cliente a enfrentar
esses sentimentos e medos, a descer nesses porões escuros e assustadores,
acreditando e reconhecendo que ele pode ser muito mais do que tem sido sem ter
um apoio para atravessar esse deserto de tantos anos.
Interessante como esse texto faz um link importante com o
anterior:
Meu desejo sincero com o Projeto Revelando-Ser é que possamos
facilitar que estes silêncios sejam cuidadosamente revelados para que tanto as
pessoas que foram abusadas, como também as que não foram, possam reconhecer o
quanto é importante abrir espaço para cuidar destas feridas antigas,
possibilitando que seja possível olharmos para um futuro com mais cuidado,
leveza, esperança e inteireza.
Vamos falar mais sobre isso no Cine-Debate?
Nenhum comentário:
Postar um comentário