domingo, 5 de agosto de 2018

No Limite do Silêncio


No Limite do Silêncio
Este título é de um filme muito profundo sobre o abuso sexual e seus desdobramentos. Estaremos realizando um cine-debate sobre ele no início de setembro. Ao assistir novamente ao filme, fiquei com este mote no pensamento:

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?

Como falei em outro momento, já venho acompanhando terapeuticamente várias pessoas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência e que me procuraram para iniciar a psicoterapia. É importante frisar que, tal como tem descrito em alguns estudos acadêmicos, a demanda do abuso sexual não era a “demanda principal” que fazia com que estas pessoas me procurassem. O que aconteceu, em praticamente todos os casos, foi a pessoa vir com várias demandas diferentes e o abuso sexual aparecer posteriormente como algo importante para o processo, em alguns casos se tornando até no ponto principal da terapia.
Vejo essa situação por dois prismas diferentes no momento, um parecendo mais frequente do que o outro:

1 - A pessoa que foi abusada sexualmente reconhece que o abuso é algo importante a ser trabalhado, porém, não é fácil para ela tocar nesse conteúdo, principalmente com uma pessoa que ela não conhece, nunca viu e que ainda não estabeleceu uma relação de confiança onde ela sinta que pode se abrir para falar de algo que gera tantos sentimentos contraditórios dentro dela;
2 - A pessoa que foi abusada sexualmente não tem ideia do quanto aquela situação tem influenciado sua vida. Muitas vezes, a pessoa não lembra muito bem e, como ela sobreviveu e não fala mais disso, parece não ser importante tocar nesse assunto (sinto como esta situação mais frequente).

O que aconteceu, em cada processo foi que, a própria terapia - ao cuidar dos assuntos que estavam mais emergentes no aqui e agora - trouxe à tona a situação do abuso sexual naturalmente, sem termos que ir atrás dele intencionalmente, fazendo com que tivéssemos que nos debruçar mais sobre esse passado.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Já tive um cliente que demorou dois anos de processo para falar sobre o abuso sexual. Quando falo assim, parece até meio estranho, pois tivemos que re-significar tudo que tinha sido falado até então e, com o decorrer do processo, ele chegou à conclusão de que estávamos falando do abuso o tempo todo, porém, sem termos consciência de que todos os conteúdos falados já faziam parte dos desdobramentos do abuso. Passamos ainda alguns anos trabalhando em cima dessa "descoberta".

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Atendi uma cliente que, depois de algum tempo de terapia, também trouxe a situação do abuso na sua vida. Porém, ela tinha reações físicas muito fortes ao apenas cogitar falar sobre este assunto na terapia. Foi uma experiência muito significativa para mim. Ela vinha duas vezes por semana para a psicoterapia, e demonstrava que queria falar sobre o assunto, porém, ao começar, a sua vista ficava embaçada ou escurecia, sentia muitos calafrios, falta de ar, etc. Eu tive que reconhecer que tocar naquele assunto estava para além da minha disponibilidade enquanto terapeuta, bem como também para além da sua vontade consciente enquanto cliente. Com o passar do tempo, foi possível ver estas reações se acalmando mais e pudemos vivenciar momentos de intensa dor, em que percebemos o que aquelas reações estavam evitando.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Estamos realizando os atendimentos psicoterapêuticos às pessoas que têm procurado o Projeto Revelando-Ser. Algumas destas pessoas vieram para alguma roda de conversa, ou palestras do projeto. Ao atender esta pessoas, foi possível perceber uma diferença no que se refere a este Limite do Silêncio. As pessoas que eu atendi no meu consultório particular, como exemplifiquei rapidamente acima, me procuraram para falar de outras demandas e, com o tempo, começaram a falar sobre o abuso sexual. Sinto que durante este tempo foi possível construir uma relação de confiança, acolhimento e aceitação que foi de fundamental importância para se adentrar neste terreno tão delicado posteriormente. Algumas das pessoas que procuraram o projeto e que demonstraram interesse na psicoterapia chegaram de uma forma diferente. Elas estavam vindo para um projeto em que o abuso sexual se anunciava desde o momento em que ela entrava em contato pelo telefone. Ao chegar à minha sala, a pessoa já estava dizendo que passou por aquilo, sem ter nenhum vínculo maior com aquele que iria escutar coisas muito profundas e dolorosas da sua vida. É como se aquela ferida já estivesse totalmente aberta e exposta e percebi que alguns clientes se sentiam meio que na obrigação de falar sobre o assunto, não somente porque ele estava muito emergente na sua vida, mas também porque o projeto é sobre este assunto. Sinto que estas situações podem ter gerado uma dificuldade adicional para a pessoa conseguir sustentar a sua decisão de ir se revelando aos poucos. É como se o primeiro atendimento não respeitasse este Limite do Silêncio, colocando a pessoa em um lugar que exigia mais do que ela estivesse podendo dar naquele momento. Perceber esta dinâmica nos primeiros atendimentos foi importante para que eu pudesse verbalizar para os clientes seguintes, no primeiro atendimento, que não era obrigatório falar do abuso sexual, que eu estava disponível para estar com eles no que fosse possível falar naquele momento. Em uma ocasião senti o quanto falar isso para uma cliente no primeiro atendimento a deixou mais aliviada e mais segura de que não precisaria se expor obrigatoriamente ou passar por cima de si, dos seus limites, para estar na relação terapêutica comigo. O que aconteceu em seguida é que o abuso sexual ainda apareceu nas primeiras sessões, mas com um ritmo que estava sendo mais cadenciado pelo cliente do que por mim ou pela “Instituição”. Sinto que, mesmo que deixemos os clientes à vontade para não falar logo sobre o abuso, eles vão querer trazer isso, afinal de contas, a maioria deles não suporta mais ficar com esse segredo só para si, já fazem isso há muito tempo. Para mim é muito mais uma demonstração de respeito, uma demonstração de delicadeza e cuidado com o tempo, limites e ritmo no processo de revelação de cada um.

Qual o Limite do Silêncio de cada pessoa?
Sinto que as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência criam um certo perímetro de acesso a algumas experiências que se passam consigo como um mecanismo de sobrevivência psicológica. Para mim, enquanto terapeuta, cabe honrar esse perímetro, reconhecendo-o como importante e aceitando que ele precisou estar aí. Porém, este perímetro, ao mesmo tempo em que protege o cliente de uma possível desestruturação, também limita, também o mantém prisioneiro dos próprios sentimentos, podendo se tornar uma experiência tão claustrofóbica que também coloca em risco a própria sobrevivência deste cliente. Então, junto com a aceitação desse perímetro, reconheço toda a vida e potencialidade que podem estar abafadas por este modo de funcionamento rígido. Garantindo a presença das atitudes facilitadoras (Carl Rogers), posso convidar o cliente a enfrentar esses sentimentos e medos, a descer nesses porões escuros e assustadores, acreditando e reconhecendo que ele pode ser muito mais do que tem sido sem ter um apoio para atravessar esse deserto de tantos anos.
Interessante como esse texto faz um link importante com o anterior:

Meu desejo sincero com o Projeto Revelando-Ser é que possamos facilitar que estes silêncios sejam cuidadosamente revelados para que tanto as pessoas que foram abusadas, como também as que não foram, possam reconhecer o quanto é importante abrir espaço para cuidar destas feridas antigas, possibilitando que seja possível olharmos para um futuro com mais cuidado, leveza, esperança e inteireza.

Vamos falar mais sobre isso no Cine-Debate?




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