quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

"Aquela tarde nunca acabou..." - Jogo Perigoso (2017)


 TRECHO DO FILME

"- A questão, Jessie, é que você se casou com a única dinâmica que conhecia. Você era uma garota, ele era um homem. Nunca conseguiu escapar disso. Aquela tarde nunca acabou.

- Já não basta eu estar aqui? Também preciso estar lá? De novo?!

- Me diga você...

 Falar sobre as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência implica em lidar com uma série de complexidades que nem sempre são fáceis de serem trabalhadas dentro de um processo psicoterapêutico.

Esta cena do filme Jogo Perigoso (2017) retrata uma dinâmica que tenho acompanhado nos processos de muitas pessoas adultas que me procuram.

Na cena, Jessie (personagem principal) é uma mulher adulta que passou por uma situação de abuso sexual bem no início da adolescência e, como a maior parte das crianças e adolescentes que passam por essa situação, não teve a possibilidade de elaborar esse fato quando aconteceu, guardando esse segredo por toda a vida. O diálogo citado acontece quando uma personagem do filme que conhece a Jessie muito bem diz que ela ainda vivia aprisionada naquele passado. E que, mesmo ela não pensasse sobre o abuso sexual, tinha feito várias “escolhas” da sua vida influenciada por aquele evento. A personagem insiste para que Jessie olhe para o seu passado para encontrar a saída da prisão bem concreta que estava vivendo no momento presente.

Volto para as pessoas que me procuram. Muitas pessoas adultas abusadas sexualmente na infância e adolescência desenvolvem uma série de consequências durante a sua vida que tem uma relação íntima com aquele evento do passado. Porém, fez parte do movimento de sobrevivência desta pessoa não olhar para aquela experiência para não sofrer ainda mais. Logo, aquela criança ou adolescente se torna uma pessoa adulta que carrega uma série de comportamentos sem nem conseguir entender que estes são um desdobramento de algo que parecia ter ficado lá atrás, mas torna-se presente em vários momentos da vida.

Na psicoterapia com estas pessoas, quando o abuso sexual começa a aparecer como algo mais significativo, é muito comum que elas sintam dificuldades em dar o espaço necessário para que essa demanda surja com mais nitidez. Tal como a Jessie do filme, a pessoa já está se sentindo muito mal por estar vivendo situações de depressões, ansiedades, dificuldades nos relacionamentos afetivos e sexuais, baixa autoestima, ideações suicidas, etc. Quando a psicoterapia caminha para adentrarmos nessas memórias do “passado”, a pessoa adulta pode se sentir ainda mais desolada. Tal como a Jessie pode perguntar: “Já não basta todo o sofrimento que tenho sentido na minha vida atualmente? Eu ainda tenho que lembrar daquelas situações do passado. Justamente aquelas que eu passei a vida toda tentando esquecer?!”

Responder a esse questionamento não é fácil. É como se a pessoa sentisse que é coisa demais para ela dar conta de uma vez só. E ela tem razão! Por isso que, em muitos processos terapêuticos, é preciso se ter um tempo maior para que se compreenda o impacto que um abuso sexual teve na vida de quem passou por ele e seus desdobramentos naquela pessoa adulta que me procura.

Tal como no filme, muitas vezes é necessário revolver este passado para encontrar as chaves que podem nos ajudar a lidar melhor com as prisões que vivenciamos no momento presente. E é importante que tanto o profissional quanto o cliente saibam que os primeiros momentos de entrar em contato com essa demanda silenciada por tantos anos podem ser muito desafiantes. Pode parecer até que as coisas estão piorando ao invés de melhorar. Mas tenho podido acompanhar várias pessoas e constato que, após esse deserto inicial, em muitos casos é possível para a pessoa ir encontrando, aos poucos, um lugar melhor consigo mesmo e com a sua própria história.

Que possamos, enquanto profissionais e pessoas, nos disponibilizar a entender mais dessas complexidades para podermos facilitar que as pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência possam saírem mais dos seus isolamentos, dos seus silêncios.


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