De uns tempos para cá, me senti tal qual a metamorfose
ambulante do grande Raul: "Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse
antes"...rsrs
Digo o oposto porque eu mesmo já escrevi um texto na época
das eleições de 2018:
Mas esse post que escrevo agora não se trata, realmente, de uma oposição ao que escrevi há dois anos. Mas parece.
Gostaria de iniciar lembrando o que já falei em outro escrito:
falo, novamente, do meu lugar de fala, de um lugar de quem é privilegiado, de
quem pode fazer quarentena, de quem continua trabalhando em casa, etc. Falo
sobre o meu lugar e, talvez, do lugar de algumas pessoas que têm uma posição
social parecida com a minha. Minha fala não pode ser vista para além de vários
recortes necessários para dar conta da complexidade do nosso momento social.
Indo para o assunto propriamente dito.
Há algumas semanas participei de um grupo de cuidado com
alguns psicólogos e psicólogas que trabalham dentro da perspectiva da Abordagem Centrada na
Pessoa e o assunto começou a girar em torno de como estava sendo difícil lidar
com o momento atual e, principalmente, com as declarações e posturas do nosso presidente
diante de uma situação tão grave em tantos níveis diferentes e complexos.
Durante esse grupo uma psicóloga amiga – que me autorizou a trazer esse momento
dela no grupo aqui nesse post – começou a falar de como escutar o presidente
evocava o que havia de pior dentro dela, que emergiam tantos sentimentos ruins,
destrutivos, odiosos, que ela não sabia bem como lidar com tudo aquilo. Em
algum momento ela simbolizou aquela experiência falando que ela sentia um
monstro dentro dela e que ela tinha que ter muito cuidado para não deixar esse
monstro sair, causando ainda mais destruição. Depois desse forte relato, outras
participantes do mesmo grupo se identificaram muito com essa fala e passaram a
falar também dos seus monstros. Pode parecer que eu tenha entendido errado, mas
senti na fala dessas mulheres, o reconhecimento de algo muito ruim que se passa
dentro delas, mas também um desejo de não deixar isso sair, por já perceberem
ou acharem, que não contribuiria muito com uma real mudança do quadro atual
trazer tanta destrutividade. Não pareceu simples conseguir equilibrar esses
sentimentos contraditórios que elas viviam. Em algum momento do grupo eu
perguntei qual era o lugar desses monstros. Conversamos sobre tudo isso, mas
essa pergunta continuou ecoando na minha cabeça até hoje.
Tenho refletido muito sobre o quanto estamos inertes diante
de tantas atrocidades diárias que nos bombardeiam ao longo desses últimos anos
e que, pelo menos na minha opinião, se intensificaram ainda mais durante essa
pandemia e o desgoverno que não consegue dar uma resposta necessária para o
tamanho da crise que estamos vivendo. Também me reconheço na fala das mulheres
que se colocaram no grupo citado, tanto na intensidade da raiva, como também no
esforço de não propagar mais ódio, tal como eu escrevi no post anterior citado
acima.
Comecei a ver o esforço que eu preciso para não dar vazão a
toda raiva que sinto diante de tudo. O monstro é tão grande que comecei a
desconfiar que o esforço que eu tenho que fazer para não pagar com a mesma
moeda à toda a violência que sinto que tem sido praticada pelos políticos da
extrema direita e seus seguidores tem um preço caro para mim. Sinto que quando o
monstro aparece e eu, por acreditar que não seria humanamente útil, tento
segura-lo de toda forma, tenho uma tendência a me adoecer por dentro, em um
processo de implosão que também vem se apresentando como uma perda de energia.
Parece que minha energia é gasta tentando me conter, sufocar o monstro e que,
quando eu consigo essa proeza, parece não sobrar muito mais de energia para
poder pensar efetivamente o que fazer proativamente no sentido de querer mudar
alguma coisa.

Ao meu ver a minha raiva me joga para fazer algo de concreto,
para não aceitar de forma alguma o desenrolar dos fatos, ela me leva a querer
ir pro meio da rua e talvez fazer algo mais radical. Se eu escuto o meu monstro
ele grita na minha cara que é inadmissível ninguém parar o presidente, seja
qual for o custo; que não é possível que a minha resposta a essa loucura que
vivemos seja “somente” ficar na quarentena, no meu lugar de privilégio, e fazer
movimentos mais individuais de cuidados comigo e com as pessoas a quem tenho um
acesso mais direto; ela me lembra o quanto os números são vidas e que não é
possível esperar as eleições para tentar modificar as coisas dentro do jogo
democrático, através de mobilizações, votos mais conscientes, etc. Minha raiva
me parece muito descrente e desesperada. Desesperada e/ou desesperançada, no
sentido de não achar que se tem mais o que esperar. Meu monstro me pergunta:
“Qual o limite da barbárie? Até quando ainda é humano conviver com tantas monstruosidade
sem fazer ‘nada’?”. Quase me sinto disposto à lei do talião.

Porém, de fato, esse post não é o oposto do que eu disse antes.
Não acho que dar vazão de qualquer forma para o meu monstro seria a solução dos
nossos problemas multifacetados, estruturais, históricos, complexos, etc. Não
acho que se tem soluções mágicas e rápidas para sairmos dessa crise. Porém,
gostaria muito de encontrar um lugar de equilíbrio entre não querer realimentar
a guerra e o ódio dentro de mim e na sociedade, mas também não ficar como um
mero expectador diante de toda sorte de desgraças que está sendo promovida pelo
presidente e pelas pessoas que o apoiam. Mas é muito torturante ficar tão
próximo da minha raiva e sentir toda a impotência dos momentos atuais. Por isso
que eu acho que usamos como um mecanismo de defesa, esse lugar de se distanciar
e ficamos mais inertes a tudo, restando uma mobilização de redes sociais.
Precisamos encontrar formas de não ficarmos somente
intoxicados com essa raiva adoecedora que faz com que ou queiramos explodir
para expurgar o veneno, ou perdermos toda a nossa vitalidade encontrando uma
forma isolada de ir lidando com o monstro, depurando o veneno dentro do nosso
organismo.
Talvez, para além de achar que o meu monstro é meramente
destrutivo, eu possa significar que ele ainda é aquilo me mantém com algo que
eu não posso perder de jeito nenhum: minha própria humanidade. Talvez o meu
monstro tenha que não ser apenas amordaçado, mas sim direcionado para um lugar
onde ele pode ser extremamente eficaz e propositivo e que toda a raiva que me
perpassa possa se transformar em algo que de fato contribua para uma real
mudança.
Não tenho uma solução pronta para isso. Talvez um bom começo
seja encontrar espaços de cuidados para que possamos, de maneira segura,
entrarmos em contato com os nossos monstros. Colocarmos ele para fora, para
dialogar com os monstros de outras pessoas que tenham uma intenção semelhante e
pararmos de termos medo dele. Como se sabe em psicoterapia: quanto maior a
repressão, mais o conteúdo reprimido cresce! Talvez possamos, em conjunto, encontrar nas nossas sombras, na nossa raiva, na nossa indignação um lugar que
possibilite lutar de maneira efetiva e contundente contra as monstruosidades de
um sistema necropolítico, sem nos perdemos na nossa própria monstruosidade.