sexta-feira, 15 de maio de 2020

Qual o lugar dos monstros?


De uns tempos para cá, me senti tal qual a metamorfose ambulante do grande Raul: "Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes"...rsrs
Digo o oposto porque eu mesmo já escrevi um texto na época das eleições de 2018:

Mas esse post que escrevo agora não se trata, realmente, de uma oposição ao que escrevi há dois anos.  Mas parece.

Gostaria de iniciar lembrando o que já falei em outro escrito: falo, novamente, do meu lugar de fala, de um lugar de quem é privilegiado, de quem pode fazer quarentena, de quem continua trabalhando em casa, etc. Falo sobre o meu lugar e, talvez, do lugar de algumas pessoas que têm uma posição social parecida com a minha. Minha fala não pode ser vista para além de vários recortes necessários para dar conta da complexidade do nosso momento social.

Indo para o assunto propriamente dito.

Há algumas semanas participei de um grupo de cuidado com alguns psicólogos e psicólogas que trabalham dentro da perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa e o assunto começou a girar em torno de como estava sendo difícil lidar com o momento atual e, principalmente, com as declarações e posturas do nosso presidente diante de uma situação tão grave em tantos níveis diferentes e complexos. Durante esse grupo uma psicóloga amiga – que me autorizou a trazer esse momento dela no grupo aqui nesse post – começou a falar de como escutar o presidente evocava o que havia de pior dentro dela, que emergiam tantos sentimentos ruins, destrutivos, odiosos, que ela não sabia bem como lidar com tudo aquilo. Em algum momento ela simbolizou aquela experiência falando que ela sentia um monstro dentro dela e que ela tinha que ter muito cuidado para não deixar esse monstro sair, causando ainda mais destruição. Depois desse forte relato, outras participantes do mesmo grupo se identificaram muito com essa fala e passaram a falar também dos seus monstros. Pode parecer que eu tenha entendido errado, mas senti na fala dessas mulheres, o reconhecimento de algo muito ruim que se passa dentro delas, mas também um desejo de não deixar isso sair, por já perceberem ou acharem, que não contribuiria muito com uma real mudança do quadro atual trazer tanta destrutividade. Não pareceu simples conseguir equilibrar esses sentimentos contraditórios que elas viviam. Em algum momento do grupo eu perguntei qual era o lugar desses monstros. Conversamos sobre tudo isso, mas essa pergunta continuou ecoando na minha cabeça até hoje.

Tenho refletido muito sobre o quanto estamos inertes diante de tantas atrocidades diárias que nos bombardeiam ao longo desses últimos anos e que, pelo menos na minha opinião, se intensificaram ainda mais durante essa pandemia e o desgoverno que não consegue dar uma resposta necessária para o tamanho da crise que estamos vivendo. Também me reconheço na fala das mulheres que se colocaram no grupo citado, tanto na intensidade da raiva, como também no esforço de não propagar mais ódio, tal como eu escrevi no post anterior citado acima.

Comecei a ver o esforço que eu preciso para não dar vazão a toda raiva que sinto diante de tudo. O monstro é tão grande que comecei a desconfiar que o esforço que eu tenho que fazer para não pagar com a mesma moeda à toda a violência que sinto que tem sido praticada pelos políticos da extrema direita e seus seguidores tem um preço caro para mim. Sinto que quando o monstro aparece e eu, por acreditar que não seria humanamente útil, tento segura-lo de toda forma, tenho uma tendência a me adoecer por dentro, em um processo de implosão que também vem se apresentando como uma perda de energia. Parece que minha energia é gasta tentando me conter, sufocar o monstro e que, quando eu consigo essa proeza, parece não sobrar muito mais de energia para poder pensar efetivamente o que fazer proativamente no sentido de querer mudar alguma coisa.


Ao meu ver a minha raiva me joga para fazer algo de concreto, para não aceitar de forma alguma o desenrolar dos fatos, ela me leva a querer ir pro meio da rua e talvez fazer algo mais radical. Se eu escuto o meu monstro ele grita na minha cara que é inadmissível ninguém parar o presidente, seja qual for o custo; que não é possível que a minha resposta a essa loucura que vivemos seja “somente” ficar na quarentena, no meu lugar de privilégio, e fazer movimentos mais individuais de cuidados comigo e com as pessoas a quem tenho um acesso mais direto; ela me lembra o quanto os números são vidas e que não é possível esperar as eleições para tentar modificar as coisas dentro do jogo democrático, através de mobilizações, votos mais conscientes, etc. Minha raiva me parece muito descrente e desesperada. Desesperada e/ou desesperançada, no sentido de não achar que se tem mais o que esperar. Meu monstro me pergunta: “Qual o limite da barbárie? Até quando ainda é humano conviver com tantas monstruosidade sem fazer ‘nada’?”. Quase me sinto disposto à lei do talião.

Porém, de fato, esse post não é o oposto do que eu disse antes. Não acho que dar vazão de qualquer forma para o meu monstro seria a solução dos nossos problemas multifacetados, estruturais, históricos, complexos, etc. Não acho que se tem soluções mágicas e rápidas para sairmos dessa crise. Porém, gostaria muito de encontrar um lugar de equilíbrio entre não querer realimentar a guerra e o ódio dentro de mim e na sociedade, mas também não ficar como um mero expectador diante de toda sorte de desgraças que está sendo promovida pelo presidente e pelas pessoas que o apoiam. Mas é muito torturante ficar tão próximo da minha raiva e sentir toda a impotência dos momentos atuais. Por isso que eu acho que usamos como um mecanismo de defesa, esse lugar de se distanciar e ficamos mais inertes a tudo, restando uma mobilização de redes sociais.

Precisamos encontrar formas de não ficarmos somente intoxicados com essa raiva adoecedora que faz com que ou queiramos explodir para expurgar o veneno, ou perdermos toda a nossa vitalidade encontrando uma forma isolada de ir lidando com o monstro, depurando o veneno dentro do nosso organismo.

Talvez, para além de achar que o meu monstro é meramente destrutivo, eu possa significar que ele ainda é aquilo me mantém com algo que eu não posso perder de jeito nenhum: minha própria humanidade. Talvez o meu monstro tenha que não ser apenas amordaçado, mas sim direcionado para um lugar onde ele pode ser extremamente eficaz e propositivo e que toda a raiva que me perpassa possa se transformar em algo que de fato contribua para uma real mudança.

Não tenho uma solução pronta para isso. Talvez um bom começo seja encontrar espaços de cuidados para que possamos, de maneira segura, entrarmos em contato com os nossos monstros. Colocarmos ele para fora, para dialogar com os monstros de outras pessoas que tenham uma intenção semelhante e pararmos de termos medo dele. Como se sabe em psicoterapia: quanto maior a repressão, mais o conteúdo reprimido cresce! Talvez possamos, em conjunto, encontrar nas nossas sombras, na nossa raiva, na nossa indignação um lugar que possibilite lutar de maneira efetiva e contundente contra as monstruosidades de um sistema necropolítico, sem nos perdemos na nossa própria monstruosidade.


4 comentários:

  1. Muito bom, Gui! Sempre sensível às questões de "inclusão"!

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  2. Muito boas as colocações. Estamos há um tempo já em um contexto de intensos sentimentos e é complexo equilibrar o deixar sair e o não explodir. Muito boas colocações mesmo. Dá um conforto em ler.

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    1. Pois é. Penso que se conseguimos fazer um movimento de encarar os monstros, poderemos também minimizar o gasto de energia em conter e talvez canalizar essa energia para algo que seja mais produtivo. Já estou pensando em falar de monstros específicos que têm me habitado a algum tempo. Acho que amanhã eu posto. Não sei quem é, mas gratidão pela troca. Abraços.

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