quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O Muro do Silêncio em Mim


Já faz um tempo que eu não apareço por aqui para falar dos meus projetos, né?
Passei esses últimos tempos mais recolhidos, sem falar mais sobre o tema que venho trabalhando nos últimos anos: pessoas adultas abusadas sexualmente na infância e adolescência.

Tenho falado muito sobre o MURO DO SILÊNCIO que existe em volta desta temática e apesar de me sentir bem crítico e dedicado a me aprofundar em muitas questões que dizem respeito ao abuso sexual, tive que reconhecer que este muro do silêncio TAMBÉM ESTÁ EM MIM e de várias formas. Algumas destas facetas já reconheço há tempos e venho me trabalhando para não me alienar e deixar de levar elas em consideração.

Como se deu esse reconhecimento?

Na última live que fizemos pelo Projeto Revelando-Ser falamos sobre o documentário “Athlete A”, que está disponível na netflix e conta a história de um médico que abusou sexualmente de mais de 100 adolescentes que faziam parte da equipe de ginástica olímpica dos EUA. Ao assistir novamente ao documentário, ficou muito gritante o quanto “é fácil” para um HOMEM estar num lugar de violentar uma CENTENA de MENINAS durante tanto tempo e ainda ficar sendo protegido por uma estrutura social que o acoberta. Quando terminei fui me sentindo meio triste, quase que enojado pela condição de ser homem dentro da nossa sociedade.

Escutar os relatos das mulheres, como tantos que já escutei no consultório e na vida, me fez “lembrar” do quanto as DIMENSÕES SOCIAIS e CULTURAIS que atravessam o abuso sexual perpassam pela questão de GÊNERO, lembrar de como a violência sexual está inserida e reforçada dentro de uma estrutura maior que é o MACHISMO.

Eu aspeio o verbo “lembrar” porque eu já falo sobre isso nas minhas palestras, cursos, podcast, etc. Esse reconhecimento não é uma novidade para mim. Porém, diante desse documentário, eu comecei a pensar sobre qual era O MEU LUGAR DE FALA dentro desse trabalho que desenvolvo de maneira tão dedicada. E me surpreendi com o fato de, apesar de citar o machismo como uma estrutura importante para se compreender o abuso sexual, eu nunca parei para realmente enfatizar essa relação.

Não parei para reforçar o quanto é importante que compreendamos os abusos sexuais dentro dessa teia maior de RELAÇÕES DE PODER que vulnerabiliza homens e mulher, é verdade, mas que tem, primordialmente, na sua base, um lugar de PRIVILÉGIO do lugar do homem em relação à mulher.

E eu me perguntei sobre o porquê desse elemento tão fundamental ter “me escapado” ao longo dos anos. Por que que, mesmo me dedicando tanto a problematizar tudo que tem a ver com o abuso sexual, “coincidentemente”, não procurei me debruçar mais sobre essa relação tão importante?

E a resposta veio nua e crua, de uma forma que eu nem esperava. Porque isso NÃO ME INCOMODA TANTO dentro do MEU LUGAR DE SER HOMEM na sociedade. Mas assim que eu respondi isso, me peguei perguntando: Mas como assim? Você não escuta tantas mulheres falando disso? Você não se importa tanto com elas, verdadeiramente? Você não estuda sobre isso há tanto tempo? E a resposta para todas essas perguntas foi sendo: Sim, sim, sim e sim!

Mas ainda assim me restou uma sensação de que o muro do silêncio é tão grande, é tão estrutural, que, por mais paradoxal que possa parecer, mesmo eu me dedicando a desconstruir esse muro, o fato de eu ser homem dentro da nossa sociedade me fez não priorizar essa parte da dimensão estrutural. Mesmo me trabalhando muito, ainda é difícil RECONHECER OS PRÓPRIOS PRIVILÉGIOS e as VIOLÊNCIAS que também são cometidas a partir deles.

Logicamente que eu tenho um argumento muito bom para me justificar por essa omissão: O MURO DO SILÊNCIO em relação ao abuso sexual, e ainda mais especificamente às pessoas adultas que foram abusadas sexualmente na infância e adolescência, É TÃO GRANDE que eu tenho MUITAS coisas para compartilhar, refletir, sensibilizar as demais pessoas que não faltam assuntos para falar em todos os lugares que eu vou. Sempre falo que é preciso TEMPO para se compreender esse GRANDE QUEBRA-CABEÇA e as peças são muitas.

Mas depois desse recolhimento recente eu paro para aceitar que não foi somente por isso. Me veio uma frase muito forte nessas reflexões: Se fosse uma MULHER que puxasse mais as questões teóricas do projeto Revelando-Ser, as temáticas do MACHISMO, PATRIARCADO, RELAÇÕES DE PODER, etc. já teriam sido, radicalmente, mais ENFATIZADAS, ELABORADAS e COMPARTILHADAS ao longo desse tempo de projeto.

Foi um processo de despertar meio esquisito, por me parecer que não tinha nenhuma novidade que se apresentava a minha frente. Foi mais um lugar de gerar esse ESTRANHAMENTO dentro daquilo que PARECE SER NATURAL.

Lembro de uma frase de uma professora de psicologia social que eu tive na UFPE: “precisa ser um peixinho muito metido a besta para perceber que onde ele vive é molhado!” Fiquei me cobrando por ter percebido essa ausência logo. Mas estou me trabalhando para compreender que a estrutura aprisiona a todes, inclusive a nós profissionais.

O fato de eu ter me pego de surpresa, alimentando estruturas dentro de mim que me fazem olhar menos para alguns aspectos de toda essa complexidade me leva a estar mais atento para os profissionais que estão no lugar de acolher as pessoas adultas que passaram por essa situação de abuso.

Quando eu parei para reconhecer que, mesmo com toda imersão e dedicação ao longo dos anos, ainda tenho aspectos que me constituem e que me fazem reproduzir de maneira tão natural, por exemplo, ter menos interesse por evidenciar as relações de poder que estão na base das violências diárias que acontecem na nossa sociedade, me perguntei: E os (as) demais profissionais que nem pararam para se deter um pouco mais sobre estas questões? Será que estão atentes para a complexidade desse quebra-cabeça? E se não estiverem, será que não precisamos falar mais sobre isso?

Temos recebido muitos relatos no Revelando-Ser que nos mostram que muitas pessoas adultas que procuraram uma ajuda profissional, encontraram respostas que não ajudaram em nada, inclusive aprofundaram ainda mais uma dor que já era dilacerante.

Então, estou querendo me dedicar mais a problematizar e sensibilizar todes profissionais a se dedicarem um pouco mais a olhar para essa temática.

Mas explico melhor sobre isso em outro post ou vídeo.

Por ora só quis sair do meu lugar de silêncio para dizer que, apesar das contradições desse percurso, quero muito continuar compartilhando com vocês as coisas que vivo e aprendo, para que possamos desconstruir, verdadeiramente, esse muro do silêncio estrutural que aprisiona tanta gente.

 

 

2 comentários:

  1. Guilherme sua reflexão é muito importante e culmina no fato de poucos homens se interessarem em estudar e debater a questão do abuso sexual na infância. Mesmo no curso que vc promoveu só tinha mulheres e isso já é um grande sinal de tudo que vc postou sobre suas reflexões. Ainda bem que vc teve esse "estalo" e acredito que vai provocar muitas mudanças. Estarei aqui para ver todas elas acontecerem. Grande abraço

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  2. Gratidão pelo retorno, Márcia!
    Esse estalo foi e está sendo difícil de vivenciar.
    Nos cursos essa ausência era densa mesmo, eu me senti muito só..rsrs
    Mas também senti o peso de estar falando sobre essa temática estando no lugar de homem, principal algoz disso tudo.
    Temos muito que trazer os homens para discutirem sobre os abusos sexuais. Pena que o machismo aprisiona tanto que parece que é mais difícil faze-los chegarem.
    Mas estamos nesse caminho!
    Depois de todas essas reme sinto ainda mais estigado a pensar em formas de como contribuir com essa desconstrução, estando no lugar que estou.
    Ter você por perto, como companheira de "missão" tem sido bem motivador.
    Daqui a pouco a gente se encontra novamente.
    Abração

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