![]() |
Já faz um tempo que eu não
apareço por aqui para falar dos meus projetos, né?
Passei esses últimos tempos mais recolhidos, sem falar mais sobre o tema que
venho trabalhando nos últimos anos: pessoas adultas abusadas sexualmente na
infância e adolescência.
Tenho falado muito sobre o MURO
DO SILÊNCIO que existe em volta desta temática e apesar de me sentir bem
crítico e dedicado a me aprofundar em muitas questões que dizem respeito ao
abuso sexual, tive que reconhecer que este muro do silêncio TAMBÉM ESTÁ EM MIM e
de várias formas. Algumas destas facetas já reconheço há tempos e venho me
trabalhando para não me alienar e deixar de levar elas em consideração.
Como se deu esse reconhecimento?
Na última live que fizemos pelo Projeto
Revelando-Ser falamos sobre o documentário “Athlete A”, que está disponível na
netflix e conta a história de um médico que abusou sexualmente de mais de 100
adolescentes que faziam parte da equipe de ginástica olímpica dos EUA. Ao
assistir novamente ao documentário, ficou muito gritante o quanto “é fácil”
para um HOMEM estar num lugar de violentar uma CENTENA de MENINAS durante tanto
tempo e ainda ficar sendo protegido por uma estrutura social que o acoberta.
Quando terminei fui me sentindo meio triste, quase que enojado pela condição de
ser homem dentro da nossa sociedade.
Escutar os relatos das mulheres,
como tantos que já escutei no consultório e na vida, me fez “lembrar” do
quanto as DIMENSÕES SOCIAIS e CULTURAIS que atravessam o abuso sexual perpassam
pela questão de GÊNERO, lembrar de como a violência sexual está inserida e
reforçada dentro de uma estrutura maior que é o MACHISMO.
Eu aspeio o verbo “lembrar”
porque eu já falo sobre isso nas minhas palestras, cursos, podcast, etc. Esse
reconhecimento não é uma novidade para mim. Porém, diante desse documentário,
eu comecei a pensar sobre qual era O MEU LUGAR DE FALA dentro desse trabalho
que desenvolvo de maneira tão dedicada. E me surpreendi com o fato de, apesar
de citar o machismo como uma estrutura importante para se compreender o abuso
sexual, eu nunca parei para realmente enfatizar essa relação.
Não parei para reforçar o quanto
é importante que compreendamos os abusos sexuais dentro dessa teia maior de
RELAÇÕES DE PODER que vulnerabiliza homens e mulher, é verdade, mas que tem,
primordialmente, na sua base, um lugar de PRIVILÉGIO do lugar do homem em
relação à mulher.
E eu me perguntei sobre o porquê
desse elemento tão fundamental ter “me escapado” ao longo dos anos. Por que
que, mesmo me dedicando tanto a problematizar tudo que tem a ver com o abuso
sexual, “coincidentemente”, não procurei me debruçar mais sobre essa relação
tão importante?
E a resposta veio nua e crua, de
uma forma que eu nem esperava. Porque isso NÃO ME INCOMODA TANTO dentro do MEU LUGAR DE SER HOMEM na sociedade. Mas assim que eu respondi isso, me peguei
perguntando: Mas como assim? Você não escuta tantas mulheres falando disso? Você
não se importa tanto com elas, verdadeiramente? Você não estuda sobre isso há
tanto tempo? E a resposta para todas essas perguntas foi sendo: Sim, sim, sim
e sim!
Mas ainda assim me restou uma sensação de que o muro do silêncio é tão grande, é tão estrutural, que, por mais paradoxal que possa parecer, mesmo eu me dedicando a desconstruir esse muro, o fato de eu ser homem dentro da nossa sociedade me fez não priorizar essa parte da dimensão estrutural. Mesmo me trabalhando muito, ainda é difícil RECONHECER OS PRÓPRIOS PRIVILÉGIOS e as VIOLÊNCIAS que também são cometidas a partir deles.
Logicamente que eu tenho um
argumento muito bom para me justificar por essa omissão: O MURO DO SILÊNCIO em
relação ao abuso sexual, e ainda mais especificamente às pessoas adultas que
foram abusadas sexualmente na infância e adolescência, É TÃO GRANDE que eu
tenho MUITAS coisas para compartilhar, refletir, sensibilizar as demais pessoas
que não faltam assuntos para falar em todos os lugares que eu vou. Sempre falo
que é preciso TEMPO para se compreender esse GRANDE QUEBRA-CABEÇA e as peças
são muitas.
Mas depois desse recolhimento recente
eu paro para aceitar que não foi somente por isso. Me veio uma frase muito
forte nessas reflexões: Se fosse uma MULHER que puxasse mais as questões
teóricas do projeto Revelando-Ser, as temáticas do MACHISMO, PATRIARCADO, RELAÇÕES DE PODER, etc. já teriam sido, radicalmente, mais ENFATIZADAS, ELABORADAS e
COMPARTILHADAS ao longo desse tempo de projeto.
Foi um processo de despertar meio
esquisito, por me parecer que não tinha nenhuma novidade que se apresentava a
minha frente. Foi mais um lugar de gerar esse ESTRANHAMENTO dentro daquilo que
PARECE SER NATURAL.
Lembro de uma frase de uma
professora de psicologia social que eu tive na UFPE: “precisa ser um peixinho
muito metido a besta para perceber que onde ele vive é molhado!” Fiquei me
cobrando por ter percebido essa ausência logo. Mas estou me trabalhando para
compreender que a estrutura aprisiona a todes, inclusive a nós profissionais.
O fato de eu ter me pego de
surpresa, alimentando estruturas dentro de mim que me fazem olhar menos para
alguns aspectos de toda essa complexidade me leva a estar mais atento para os profissionais que estão no lugar de acolher as pessoas
adultas que passaram por essa situação de abuso.
Quando eu parei para reconhecer
que, mesmo com toda imersão e dedicação ao longo dos anos, ainda tenho aspectos
que me constituem e que me fazem reproduzir de maneira tão natural, por
exemplo, ter menos interesse por evidenciar as relações de poder que estão na
base das violências diárias que acontecem na nossa sociedade, me perguntei: E
os (as) demais profissionais que nem pararam para se deter um pouco mais sobre
estas questões? Será que estão atentes para a complexidade desse quebra-cabeça?
E se não estiverem, será que não precisamos falar mais sobre isso?
Temos recebido muitos relatos no
Revelando-Ser que nos mostram que muitas pessoas adultas que procuraram uma
ajuda profissional, encontraram respostas que não ajudaram em nada, inclusive
aprofundaram ainda mais uma dor que já era dilacerante.
Então, estou querendo me dedicar
mais a problematizar e sensibilizar todes profissionais a se dedicarem um pouco
mais a olhar para essa temática.
Mas explico melhor sobre isso em
outro post ou vídeo.
Por ora só quis sair do meu lugar
de silêncio para dizer que, apesar das contradições desse percurso, quero muito
continuar compartilhando com vocês as coisas que vivo e aprendo, para que
possamos desconstruir, verdadeiramente, esse muro do silêncio estrutural que aprisiona
tanta gente.